Na verdade não só assisto, vivo o Pantanal desde 2017 quando nos somamos à um projeto de defesa dos rios junto aos Comitês Populares da Águas na região do Alto Paraguai.
É uma luta pelas águas, pela existência dos rios como força de vida.
É uma luta por permanência, a mesma que orienta as chuvas, a seca, que localiza os ninhais para os milhares de pássaros se reproduzirem.
É uma luta para afirmar um modo de existência humano e não humano.
Neste final de semana assisti a uma live organizada pelos Comitês Populares que formam a Escola de Militância Pantaneira e o Fórum de Mudanças Climáticas chamada “Direitos da Natureza”.
Professores, pesquisadores, gente com formação em direito apresentaram uma diversidade de declarações, leis, minutas, políticas públicas que colocam o rio, a natureza como um “sujeito de direitos”.
No meio da live comecei a pensar, se a turma dos comitês estava captando a mensagem como eu, e como penso em verso, a coisa saiu assim:
Direito companheirada
não é coisa simples, mas aqui tá dando pra compreender:
É instrumento pra transformar, pra regular a sociedade
pra garantia de um bem-viver!
É jurídico é político
pra gente usar junto com a luta
Tem um montão de textos e declarações
tem letra que não acaba mais nessas minuta…
Mas tudo isso,
todas essas letra do direito à natureza
vale mesmo pra reconhecer
coisas que a gente aqui já sabe, e já põe na mesa!
Que ela, a natureza é soberana
que ela não é objeto e deve ser respeitada
Fica esperto sujeito homem
Capitalismo e agronegócio, tá na hora da virada!
Nós dos comitês populares
reunidos aqui para estudar
para com ações
ao Rio Paraguai nos somar
Nós fazemos isso porque
compreendemos o rio e a natureza
como se fossem um de nós
Um ambiente vivo
e se é vivo tem direito!
Chega de usar
o Rio Paraguai para ganhar, para explorar!
O Rio Paraguai e todos os rios têm direito
estão aqui para reivindicar
Atenção Comitês Populares, convoco todos vocês
a partir deste encontro pensar:
Rio Paraguai é nosso companheiro de luta!
Direitos à vida ele têm.
E assim temos que chamar
Viva o companheiro Rio Paraguai!
Minha intuição primeira é de que o rio nessa perspectiva humanizadora, quando transformado em “sujeito de direitos” precisa ser chamado de companheiro! Pois luta, resiste, insiste em seguir correndo, fazendo curvas diante da imposição, ultrapassando barreiras, quando tentam lhe impor. O rio doa sentido à militância! Dele advêm o alimento e o sustento, nele nos inspiramos, e junto dele, lutamos!
Longe de querer transformar o rio em um humano para ter direitos, logo me vêm a cabeça o modo como as sociedades indígenas e os povos mais ligados à terra, à floresta nos ensina. Que as fronteiras entre natureza e cultura não existem, todos os seres vivos independentemente de sua forma física compõe e participam da vida social estabelecendo alianças, mas também relações de competição ou hostilidade.
Não foram poucas as vezes em que ouvi nas aldeias e comunidades ribeirinhas, rurais conversa sobre um ganso que gostava mais de uns do que de outros, um sapo que expressava sentimentos por certa moça… um boi que se abaixava para receber afago de um amigo…
Li recentemente, em um livro do Phillipe Descola, uma história incrível contada por um missionário do Vietnã, de uma senhora que pilava o arroz no quintal de sua casa quando ouviu os rugidos de um tigre se aproximando. O pobre estava com um pedaço de osso entalado em sua garganta e aos pulos tentava se livrar, indo parar na porta da senhora. Ela assustada, largou o pilão que caiu bem na cabeça do tigre, fazendo com que o mesmo num sobressalto, se livrasse do osso que o estrangulava.
Na noite seguinte a senhora reviu o tigre em sonho, que disse a ela “nós teremos uma amizade de pai para filha” ao que a mulher exitou dizendo que não seria digna de tal relação. O tigre insistiu e disse que “não aceitaria um não como resposta!”, trocaram cortesias.
Alguns dias depois, caminhando pela floresta a mulher deu de cara com o tigre carregando um javali. Na mesma hora em que o tigre bateu os olhos na senhora, largou a presa, rasgou-a em dois, lançou-lhe uma metade e seguiu seu caminho. E assim à senhora nunca mais lhe faltou caça, pois o tigre mantinha vivo seu contrato de parentesco com aquela que salvou sua vida.
Também já ouvi de um senhor que mora muito próximo de uma enorme montanha que nos dias em que ela amanhece coberta de neblina, significa que ela não está muito feliz, e por isso melhor evitar subi-la.
Existem pescadores que conhecem muito bem o humor dos rios e do mar e não se arriscam a medir força quando está brabo!
Sem contar as diferentes maneiras de cumprimentar florestas, igarapés, rios, montanhas, arvores, peixes que encontramos Brasil afora!
Mas tá parecendo conversa de velho do rio?
E é!
A novela remake dos anos 1990 (se não assistiu, assista!) está nos conduzindo à este espaço.
Ao invés de carregarmos a natureza pra dentro do campo dos “sujeitos de direitos” os personagens nos apontam o caminho inverso: à experiência de sermos natureza.
Curvando-se à sagacidade de um boi alongado, conhecer seus desejos, entender seus anseios, pressentir com eles a necessidade de liberdade. De uma onça arrodeando uma tapera afim de protegê-la, avançar sobre os agressores instintivamente para defender sua vida e a vida dos seus. De experimentar virar uma sucuri de olhos justiceiros, capaz de engolir alguém e não deixar rastros.
Constituir alianças com o tempo, com o vento, com as águas que sobem e descem.
“A coisa não é de explicar, é de se entender!” Disse o Zé Leôncio, encantado no Guimarães Rosa em uma certa cena, porque o povo da cidade quer explicação pra tudo!
Tem ali os encantados e tem o crambulhão, que no ouvido do Trindade sopra coisa boa… orienta o rumo.
O paradoxo de desenvolver e envolver.
O velho do rio que vira sucuri, a cobra grande daquelas bandas pantaneiras, é didático em sua abordagem: “Somos filhos de uma mãe gentil e generosa, a quem tentamos há muito tempo escravizar.” “Liberdade é entender que se não tem vento, não tem semente, e se não tem terra ela não finca.”
O velho é um encantado? Ou seria o pedaço de natureza que habita cada um de nós?
Nas palavras do poeta português Fernando Pessoa, vemos com nitidez as montanhas, vales, planícies, florestas, flores, riachos, mato, pedras, mas temos dificuldade em perceber que há um todo a qual tudo isso pertence, afinal conhecemos o mundo por partes, jamais como um todo. Mas a partir do momento que nos habituamos a enxergar a natureza como um todo, ela se torna por assim dizer um grande relógio, como qual podemos compreender sua engrenagem, montar, desmontar, acompanhar, aprender e nos somarmos à sua luta por existência.
E sendo assim…
A Juma Marruá que habita em mim, saúda a Juma Marruá que habita em ti!
Quem nunca sente réiva, só quer ir pra casa, é de poucas palavras e poucos amigos?
Juma é simbolo da autodefesa.
Sente cheiro de gente boa e ruim. Não confia nos homens.
Aponta a espingarda para a devastação.
Dica
O livro: Outras naturezas, outras culturas. Phillipe Descola, 2016. Editora 34