Por Mirela Coelho*
A produção de energia elétrica ameaça a vida do rio São Francisco e a sobrevivência de diversos povos, atravessando histórias de famílias e comunidades
Abertura das comportas da Usina Hidrelétrica Três Marias cuja construção afetou a vida de inúmeras comunidades l Foto: Cbh São Francisco/Youtube/Reprodução
Há cerca de 60 anos, o município de Três Marias, em Minas Gerais, era o lar de seu Pedro e dona Antônia, um casal de ribeirinhos recém-casados. Por ali eles viviam bem e tiravam seu sustento de tudo que o rio São Francisco provia. Em 1963, a primeira filha do casal acabara de nascer quando se iniciaram as operações da barragem Três Marias, um mega-empreendimento de geração de energia que mudaria para sempre suas vidas.
Seu Pedro até chegou a trabalhar na construção da hidrelétrica. Eles acreditavam na promessa de que, quando o lago estabilizasse, teriam suas terras de volta. Porém, a história não foi bem assim: os fazendeiros locais se apossaram das áreas que restaram e a família, como muitas outras, foi expulsa e precisou recomeçar a vida rio abaixo, na barra do Formoso. Hoje, Clarindo Pereira, 55 anos, pescador, filho do casal, e que ainda vive no local, teme que a história se repita.
Em 2020, o governo federal por meio do Diário Oficial da União anunciou a construção de uma nova barragem no rio São Francisco, a usina hidrelétrica (UHE) Formoso. Como aconteceu com seus pais, Clarindo e sua comunidade não foram consultados sobre a construção dessa barragem e as consequências esperadas para o mega-empreendimento causam medo e revolta.
“Não houve consulta prévia. Ninguém chegou e disse: “Olha, o senhor que é um pescador, que é um ribeirinho, o que o senhor acha da gente construir uma barragem aqui?” Não houve nada. Quando abrimos o olho as coisas já estavam além do que a gente previa”, afirma Pereira.
A UHE Formoso integra o Programa de Parcerias de Investimento (PPI) do Governo Federal e a empresa responsável pela hidrelétrica é a Quebec Engenharia. A nova hidrelétrica terá potência instalada de projeto de 306 MW e está projetada para ser implantada no estado de Minas Gerais, a 12 quilômetros da cidade de Pirapora (MG) e a 88 da UHE Três Marias. A área de reservatório invadirá 312 km2 e abrangerá os municípios de Buritizeiro (MG) e Pirapora (MG). O projeto atualmente segue na fase de levantamentos sociambientais prévios ao licenciamento.
Direito de existência
Biólogos brasileiros alertam para os perigos da construção de uma nova barragem na região em um estudo publicado no periódico científico “Aquatic Conservation: Marine and Freshwater Ecosystems” [Conservação Aquática: Ecossistemas Marinhos e de Água Doce]. As projeções indicam que 8 mil pescadores serão diretamente afetados e uma área de preservação permanente será profundamente alterada, assim como todo o rio São Francisco. Estudos também indicam que mais um barramento pode causar o desaparecimento de espécies de peixes ameaçadas, como o pacamã, que usam os efluentes do rio para reprodução.
Os moradores das áreas que não forem alagadas, que já vivem assombrados com o risco de rompimento da barragem Três Marias, passarão a conviver com mais uma barragem pendurada em suas cabeças – além de lidarem com todos os impactos ambientais, econômicos, sociais e psicológicos do empreendimento.
“Recebemos a proposta dessa barragem já com todo o desenvolvimento do projeto, pronto para aprovação, com o aval do presidente Bolsonaro e do governador Romeu Zema. Nós defendemos que nenhum mega-projeto, por mais importante que seja, possa retirar o direito à própria existência de um povo!”, diz seu Clarindo.
As barragens alteram a vida do rio e de suas populações l Foto: Cbh São Francisco/Youtube/Reprodução
Remoções
Histórias graves de violação de direitos fundamentais na construção de barragens são comuns no Velho Chico. Os povos Tuxá, em Rodelas (BA), e Pankararu, entre Petrolândia, Itaparica e Tacaratu (PE), também tiveram seus territórios e vidas violadas com a chegada da hidrelétrica Luiz Gonzaga (Lago de Itaparica) no norte da Bahia em 1975.
Nos anos 1980, a inundação causada pela barragem de Itaparica levou ao deslocamento de aproximadamente 40 mil pessoas, entre elas, cerca de 200 famílias Tuxá, aproximadamente 1.200 indígenas. Além dos danos materiais e imateriais produzidos com a submersão dos territórios ancestrais, a demora no reassentamento resultou na separação da população Tuxá, com grupos menores indo procurar abrigo em territórios distantes.
“Nenhuma das comunidades que saíram do território tradicional e foram para outros espaços vivem um cenário socioeconômico e cultural estável e seguro. Todos vivem processos territoriais por conta do que aconteceu no território tradicional” diz Ayrumã Tuxá, que mora na aldeia mãe, território D’zorobabé, local ancestral próximo a área que foi inundada. Ela completa:“Hoje eu percebo que foi uma estratégia inteligente do estado, pois não havia interesse de negociar ou conceder os direitos do povo Tuxá. Era mais fácil desagrupar uma comunidade”
Ayrumã conta que hoje seu povo luta em duas frentes: indenização e autodemarcação. Há quase 40 anos os Tuxás esperam respostas da Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) e da Funai (Fundação Nacional do Índio) sobre o ocorrido. Além disso, os indígenas da aldeia-mãe enfrentam um árduo processo para reconhecimento de posse das suas terras, em constante ameaça de desapropriação.
Atualmente, existe uma liminar de reintegração de posse expedida e reconhecida pela justiça federal que está com prazo suspenso até o julgamento final do Marco Temporal no STF. O Marco Temporal para demarcação de terras indígenas tem como finalidade principal determinar qual data deve ser observada para que aconteça a demarcação de um território indígena. Os ruralistas defendem que apenas as terras ocupadas em 1988 por Povos Indígenas poderão ser demarcadas, o que, por conta de processos de extermínio e expulsão, muitas vezes não acontece, como no caso dos Tuxá. A decisão é de repercussão geral, impacta diretamente no processo.
“Este é um processo de sérias violações a direitos fundamentais e o Estado está à frente disso, infelizmente. Para nós, resta a esperança de que o Marco Temporal não passe e que possam vir futuros governos que tenham propostas para os territórios indígenas e demarcação dessas terras,” destaca Ayrumã.
Depois da construção da hidrelétrica Luiz Gonzaga, o povo Pankararu viu toda a margem do rio São Francisco ser privatizada, não restando meios para desenvolvimento de suas atividades de subsistência. Até o consumo de água foi prejudicado. Para além disso, a cidade de Petrolândia que era de suma importância para as atividade econômicas Pankararu, desapareceu por entre as águas e foi transferida de local, o que impossibilitou a comunidade de vender produtos e tirar seu sustento.
“À medida que o rio foi privatizado tivemos que nos entender em um novo contexto. Em 1987 houve a nossa demarcação pela Funai e em 2006 conseguimos a extensão das terras, que é o território Entre Serras. A distância de Entre Serras ao São Francisco é de 2 km. O que são 2 quilômetros em uma demarcação? A todo momento o nosso direito ao rio é negado!”, protesta João Pankararu.
Atualmente a comunidade Pankararu não tem abastecimento de água do rio, vivendo de poços, água da chuva, fontes e nascentes. No período de seca, a água chega em carros pipa, quando o estado oferece, quando não, as famílias, mesmo que sem condições financeiras, são obrigadas a comprar água de longe. Tudo isso com o Velho Chico a poucos quilômetros.
“Não podemos mais praticar nossos rituais à beira do rio. A gente acredita que os encantados surgiram na cachoeira de Itaparica, que é onde está localizada hoje a barragem. Quando foi construída a barragem, a cachoeira foi destruída. Esse é o primeiro impacto: cultural e espiritual” conta João.
Preocupação com o futuro
Após tantas transformações, o estado atual do rio preocupa João e seu povo. “Passamos por uma seca forte nos últimos cinco anos. A Serra da Canastra, onde o São Francisco nasce, sofreu um incêndio criminoso. Com isso, a nascente diminuiu a vazão e a gente viu a água secando. Hoje o rio está um pouco mais cheio. Por mais que seja uma notícia boa, essas chuvas torrenciais que estão vindo e encheram as barragens são decorrentes das mudanças climáticas. Outros acontecimentos naturais ou provocados irão acontecer. E isso nos preocupa.”
Hoje, coletivos, pastorais, movimentos sociais e outras entidades dos povos do São Francisco se movimentam para que a barragem do Formoso não escreva mais histórias tristes naquelas águas. João afirma que “o desenvolvimento e o progresso ignoram essas histórias, mas são histórias reais, são impactos reais e que perduram por muito tempo.”
Dentre estes coletivos está o “Velho Chico Vive”, onde organizações, moradores e artistas se reuniram para denunciar os impactos da construção da UHE Formoso e defender o Rio São Francisco, através da divulgação da campanha contra a construção da hidrelétrica e ampliação do debate para a população. Eles costumam fazer visitas em campo e grandes rodas de conversa para trocar com o povo ribeirinho, num movimento de acolhimento e unificação para que todos se mantenham firmes diante das promessas que envolvem dinheiro, emprego e desenvolvimento para as comunidades.
Para Clarindo, a situação revela a “ ganância capitalista com a desculpa de que há necessidade de energia.” Segundo ele, ”o povo que vive da lamparina, porque a energia não chega aqui, não entende qual é o significado de tanta intolerância para construir uma barragem.”
Na contra-mão de empresas e governos, os povos do São Francisco pedem que outras formas de geração de energia mais limpas, que não matem bacias inteiras e respeitem as limitações e potencialidades do semiárido passem a ser consideradas pelo estado. Eles já entenderam que os frutos maduros dos empreendimentos no São Francisco definitivamente não vão para quem vive de suas águas.
“Temos que unir forças e acolher o povo para que esse projeto não passe e se apodere de mais um território. Onde vão colocar as pessoas retiradas de suas terras santas? Qual o valor para isso? O trunfo deles é ir apagando histórias e arrancando raízes. O impacto das barragens vai muito além da área que eles dizem indenizar”, finaliza seu Clarindo.
*Mirela Coelho é repórter da Escola de Ativismo.