Populações vulnerabilizadas serão as mais afetadas pelas mudanças climáticas, cada uma com sua particularidade. Gabriela Borges reflete nesse texto sobre como isso afetará as pessoas LGBTQIA+ e o que aliades e a própria comunidade podem fazer.
Por Gabriela Borges*
Durante a minha infância, eu não sabia direito o que era ser uma pessoa trans. Não entendia se as motivações vinham da disforia de gênero que sentia ou se era a desconformidade com o padrão binário enrijecido. Com o passar dos anos, compreendi a libertação do sistema que prende o sujeito em existências que nos foram propostas por um sistema colonizador. Porém, sentia que pensar nessa identidade era quase um privilégio, já que as ameaças ambientais batiam na porta, desde o esgoto a céu aberto na rua de casa até o perigo de desabamento morando em áreas de risco.
Mal sabia eu que, de lá pra cá, estaria lutando diariamente pela minha vida enquanto pessoa trans no ativismo ambiental. Um lugar que por vezes desaparece em uma silenciosa solidão repleta de perguntas: Quantas pessoas trans você já viu em lugares de tomada de decisão? Quem foi a última travesti televisionada falando sobre os efeitos climáticos que nos atingem? Enquanto isso, quantas pessoas cisgênero você conhece ocupando espaços de liderança? Finalmente, o último questionamento que rasga o peito é de que forma podemos levantar uma bandeira colorida quando a cor que mais se destaca para pessoas como eu é sempre o vermelho?
Jarda Araújo, travesti negra anticolonial, ativista, que trabalha na Secretaria Executiva de Juventude do Recife, aponta a necessidade de olhar para a exposição de pessoas trans em desastres ambientais. Segundo a comunicadora, “sem sombra de dúvidas os mais vulnerabilizados são os mais impactados. É impossível pensar a população LGBTQIA+ no Brasil desassociada dessa triste realidade, sobretudo quando analisamos o recorte de pessoas trans.”
Mesmo com todos os noticiários que escancaram os efeitos das mudanças climáticas presentes cotidianamente, ainda existe um imaginário social de que o Brasil não é um país atingido por grandes grandes desastres ambientais devido a ausência momentânea de desastres naturais como furacões, terremotos, vulcões e tsunamis, gerando um distanciamento da população do entendimento da magnitude dos problemas ambientais. Porém, a crise climática tem apresentado cada vez mais sintomas, com uma frequência ainda maior do que o comum.
Nenhum país, ainda que permaneça em negação, conseguirá escapar das mudanças climáticas. Lidar com elas requer estratégias de prevenção, o que traz a necessidade de pensar no cuidado voltado para grupos que já são vulnerabilizados, como lugares seguros para a população trans.
Para Jarda, não há possibilidade de pensarmos na eficácia de qualquer iniciativa voltada para a população T, sem pensarmos na prevenção. “É investimento em educação, viabilização dos meios de vida e subsídio, entendimento da própria estrutura e de como as agências atuam dentro de nosso território, para só a partir disso, criarmos um enfrentamento eficaz”, diz a ativista.
Por mais que o mundo esteja falando sobre as políticas de mitigação das mudanças climáticas, no Brasil esse ainda é um tema pouco desenvolvido, inclusive por conta do negacionismo climático por parte do governo, que desarticulou órgãos e secretarias de formulação de políticas sobre o tema. Tudo isso pode gerar ainda mais insegurança e dificultar as possibilidades de prevenção por falta de investimento. Nessa realidade, quando os desastres, naturais ou não, se aproximarem, os mais atingidos serão também as populações trans, principalmente aquelas não-brancas, com alguma deficiência e pobres.
Artista, travesti e profissional do sexo, Kundaline dança na praça da Sé l Foto: Pedro Stropasolas
De que forma especificamente essa população é atingida?
De acordo com um estudo recente do Chapin Hall na Universidade de Chicago, os jovens LGBTQIA+ são 120% mais propensos a viver sem-teto do que os jovens não-LGBTQIA+. Ainda segundo outra pesquisa de 2015, feita pelo Williams Institute, 40% dos jovens sem-teto nos Estados Unidos são LGBTQIA+. A situação coloca esses indivíduos na linha de frente das mudanças climáticas, sendo os primeiros impactados pelo calor ou frio extremos, chuvas, seca, poluição e outros riscos.
Na realidade brasileira, pesquisas regionais têm apontado para o crescimento da população LGBTQIA+ nas ruas. Todavia, há uma ausência estatística realizada por órgãos oficiais para o levantamento e monitoramento de dados sobre essa população. Isso limita a elaboração de qual é o perfil econômico, geográfico, social e o nível de escolaridade dessas pessoas. Com essa demanda, na última semana a Justiça finalmente acolheu o pedido do Ministério Público Federal ordenando que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) inclua campos sobre orientação sexual e identidade de gênero no Censo 2022.
Outro ponto importante para a discussão acerca da violência de gênero e sexualidade dentro da pauta climática é o descuido já presenciado em outros países com a população LGBTQIA+ em desastres. Segundo uma análise de Dale Dominey-Howes et al. em Gender, Place, and Culture, a população queer geralmente não recebe um aviso adequado antes, durante e depois de grandes chuvas. A informação correta sobre formas de cuidado e recuperação é crucial para a sobrevivência dessa população em períodos de crise climática.
Além disso, a marginalização de pessoas queer ao redor do mundo também afeta lugares que deveriam trazer segurança, como abrigos climáticos. Assim como a temperatura, eventos extremos como furacões, ciclones, tsunamis e outros mostram ainda mais as vulnerabilidades de grupos LGBTQIA+. Por exemplo, durante o furacão Katrina em 2005, pessoas trans foram discriminadas em abrigos de emergência, sendo algumas delas até rejeitadas. Outro caso também aconteceu no terremoto haitiano de 2010, em que pessoas e famílias LGBTQIA+ sofreram violência de gênero. O que você acredita que poderia acontecer com pessoas LGBTQIA+ dentro de abrigos climáticos em um país que ateia fogo em uma mulher trans a plena praça pública?
As agressões diretas ou indiretas não terminam aí, já que em alguns países após esses desastres, as populações LGBTQIA+ podem passar por perseguição. Um caso que representa a situação aconteceu após esse mesmo furacão Katrina, em que a pessoas queer, ainda fragilizadas pela tragédia, se depararem com relatos feitos por grupos religiosos que culparam a comunidade LGBTQIA+ por atrair a ira de Deus com seus “pecados”.
Ainda com todos os indícios que justificam a urgência de construir políticas públicas de cuidado para a comunidade queer no Brasil, não possuímos nenhuma medida de adaptação ou de mitigação das mudanças climáticas voltadas para populações LGBTQIA+. O motivo principal ainda é o preconceito, pois segundo um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas, há um medo em contribuir para a ‘naturalização’ da identidade gay, mostrando o grande estigma social voltado para a população queer.
Como a luta climática pode ser construída junto à pauta LGBTQIA+?
Durante as chuvas que causaram a morte de 129 pessoas até o momento região metropolitana do Recife, não tivemos nenhum investimento no cuidado específico para as necessidades da população queer, o que faz com que estratégias tenham que ser construídas pelos próprios atingidos, como coloca Araújo. “[Ações governamentais] voltadas para a população LGBTQIA+ especificamente, desconheço. Já organizações não governamentais, temos a AMOTRANS e a NATRAPE, ambas atuando com a população T em vulnerabilidade, desde o início do período pandêmico”.
Diante disso, é possível visualizar a força que a essa comunidade possui para a união em momentos de emergência. Isso somado a nossa forma de olhar para o outro de maneira cuidadosa, com respeito e empatia sobre a diversidade que compõe a história de cada um, pode ser uma ferramenta essencial para construir pontes, ao invés de muros e mudar o curso da crise climática que assola o nosso planeta.
Mask Oakland é um grupo de base trans e deficientes que distribuiu mais de 100000 máscaras N95 em todo o norte da Califórnia nos últimos dois anos. l Foto: Quinn J. Redwoods.
As iniciativas nesse sentido já começaram a se espalhar pelo mundo, em que se destaca a intersecção da pauta LGBTQIA+ junto à luta de Pessoas Com Deficiência (PCDs). Para exemplificar, trazemos as organizações compostas por PCDs queers que estiveram presentes durante incêndios e inundações de 2017, na área da baía de São Francisco, compartilhando máscaras e filtros de ar uns com os outros. Esses movimentos também se espalham pelo mundo. Em Porto Rico, as comunidades se uniram para compartilhar geradores para refrigerar insulina durante momentos de crise climática.
Outras formas de ação possível é a do grupo trans Latinx- que, com base em experiências passadas de incêndios causados por eventos de calor extremo, levaram oficinas de cuidado para pessoas queer e trans de cor. A atividade aconteceu na Cúpula de Solidariedade e Soluções de 2018, realizada ao lado da Cúpula Global de Ação Climática organizada pelo governo. Essa ação serviu como um convite para ativistas climáticos da comunidade LGBTQIA ao redor do mundo se conectarem com o objetivo de partilhar experiências.
Todas as formas de atuação desses grupos são pouco disseminadas, mas representam um pouco da potência que nós temos. Quando os corpos de pessoas queer passam por transição, o mundo precisa transicionar com a gente.Ee isso serve, especialmente, para a luta climática e socioambiental nesse momento. Nós estamos aqui e precisamos ganhar mais espaço!
Qual é o seu papel nessa história?
Não existe uma fórmula mágica para reparar uma violência que foi – e ainda é – reproduzida durante gerações. Assim como essa ferida foi aberta e mexida por anos, também serão décadas até que possamos cuidar dela.
O primeiro passo começa na representatividade! O nosso desejo é que a referência de pessoas queer não seja a pobreza, o sofrimento e a morte, feito as que denunciamos em todo o corpo deste texto.
Por isso, volto para a infância que abriu este texto, pois cresci em um mundo sem representações sobre as delícias que também podem compor a identidade diversa da nossa comunidade para um lembrete pessoal, sensível e indispensável: a falta dessa população dentro de espaços de tomada de decisões climáticas como a COP, Cúpulas e eventos propostos para as discussões ambientais reforçam esse sistema violento e apagam a nossa existência dentro do ativismo.
Cresci acreditando que teria que lutar sozinhe por mim mesme e hoje escrevo palavras neste artigo para essa adolescente que poderia ter sido poupade dessa solidão, mas também para que as gerações posteriores à mim possam se lembrar da nossa existência. No final das contas, acredito que só com a interseccionalidade entre lutas teremos uma chance de salvar o planeta!
*Gabriela Borges é não binárie, branca, graduanda em Psicologia, ativista e pesquisadore. Atua nas mídias sociais da Uma Gota no Oceano e como comunicadora no GT de Gênero da ONG Engajamundo.