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Toda foto é política: um guia para uma fotografia ativista

A fotógrafa Ana Mendes lista alguns princípios práticos e políticos para quem quer alinhar seu fazer fotográfico com ativismo e militância, dando dicas preciosas para ação por meio de imagens

Ana Mendes fotografando o ritual de São Bilibeu do povo Akroá Gamella. Território Taquaritiua, Baixada Maranhense. Autoria: Wacõ Akroá Gamella

Uma fotografia sempre será política. Por mais que o fotógrafo ou fotógrafa não queira, sua imagem vai deixar escapar algumas informações que podem localiza-la no espectro sociopolítico: a autoria (gênero, raça, sexo, idade), a época, o contexto, o conceito. E quem sabe até: a ética e o método utilizado. Onde foi publicada? Quem pagou por ela? Estava associada a que texto ou legenda? São perguntas que ajudam a ler uma imagem e suas intenções. Mas independente delas, imagens não são ingênuas. 

E por isso, nós fotógrafos/as também não podemos ser. Se as imagens que fazemos servirão para fins de militância e ativismo é importante que tenhamos algumas coisas em mente para nos diferenciarmos da produção mainstream, isto é, a produção fotográfica dominante que está principalmente nos grandes veículos de comunicação, quando se trata de documentação/fotojornalismo.  

Porque uma coisa é certa: nós ativistas, nos colocamos do lado oposto à um fazer fotográfico hegemônico, que está levando em consideração a venda de jornais para um público majoritariamente urbano, de classe média e branco. E os motivos pelo qual nós fotografamos é outro: de modo genérico utilizamos a fotografia para defender direitos independentemente da linha editorial a qual estamos sujeitos. 

E vale lembrar que para além da comunicação, as intenções políticas de uma imagem aparecem em trabalhos artísticos, antropológicos, históricos, jurídicos e científicos. Por isso, as dicas aqui compartilhadas valem para diversas áreas do conhecimento que utilizam a fotografia como meio de expressão.

Ana Mendes pilotando drone junto com crianças e adultos Akroá Gamella. Território Taquaritiua, Baixada Maranhense. Autoria: Ana Mendes.

Estou começando e agora?

O que é importante para um trabalho fotográfico é o compromisso com a informação. É fundamental apurar dados e pesquisar, não espalhar notícias falsas e alarmistas. Aconteceu um ataque a uma comunidade e você recebeu fotos, vídeos e relatos de uma única fonte? Não solte isso nas mídias imediatamente. Apure. Converse sobre os detalhes com mais de uma pessoa. Fale com as lideranças, com as organizações que apoiam a comunidade e então solte a notícia. 

Comprometa-se com a verdade da imagem!

O que é importante para um trabalho fotográfico é o compromisso com a informação. É fundamental apurar dados e pesquisar, não espalhar notícias falsas e alarmistas. Aconteceu um ataque a uma comunidade e você recebeu fotos, vídeos e relatos de uma única fonte? Não solte isso nas mídias imediatamente. Apure. Converse sobre os detalhes com mais de uma pessoa. Fale com as lideranças, com as organizações que apoiam a comunidade e então solte a notícia. 

Parcialidade vs. imparcialidade

Ativistas costumam ser acusados de serem parciais. É verdade que eles assumem um lado da história e que o conceito de imparcialidade não cabe para explicar o seu trabalho, portanto, é necessário se munir de argumentos com bases em fatos, pesquisas (acadêmicas, censitárias, se houver), números e o máximo de informações que se possa reunir. 

Uma câmera na mão e uma caderneta na mão também

Além da máquina fotográfica/celular, portanto, o que não pode faltar é um caderninho nas mãos: porque toda a fotografia precisa de identificação, isto é, legenda. O seu bloco de anotações não é uma ferramenta dispensável. Ali devem constar informações básicas: nomes das pessoas e lugares, nomes das organizações que atuam na região e contextualização sócio-histórica-política mínima.

Integrantes do Coletivo Pyhãn, do povo Akroá Gamella, fotografando o ritual de São Bilibeu. Território Taquaritiua, Baixada Maranhense. Autoria: Enh Xym Akroá Gamella

TEXTO

Ana Mendes

É fotojornalista, antropóloga, mestre em ciências sociais e atualmente doutoranda em artes pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Trabalha e vive há oito anos na Amazônia brasileira pesquisando e realizando projetos multimídia (fotografia, vídeo e texto) que interseccionam jornalismo, arte e antropologia.

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Bom, vamos lá, vamos entrar em campo, com dicas práticas e teóricas: 

Imagine que você acabou de chegar em uma comunidade ou simplesmente foi para um outro bairro da sua cidade porque lá há algum problema que precisa ser documentado fotograficamente. Pode ser o assoreamento de rio, uma remoção de moradores para uma obra que acontecerá em breve, uma mortandade de peixes na praia, etc. Nessa situação, você é um desconhecido, mas as dicas abaixo valem para situações nas quais você é morador ou frequentador assíduo também:

 

  1. Todo lugar é uma ‘comunidade’ e tem códigos: Tu já foi em uma feira à céu aberto? Um lugar caótico, com um trânsito intenso de pessoas, sons e informações visuais? Pode não parecer, mas esse lugar é cheio de regras e territórios mais ou menos definidos. Para apontar uma câmera e começar a fotografar em qualquer local, até mesmo numa feira, é necessário estar atento a um processo de aprendizagem pelo qual você vai passar: você vai aprender uma ‘língua’ nova. Vai aprender a se comportar ali, onde andar, como falar e claro, como conseguir as fotos que quer. Respeite as regras locais. 
  2.  
  3. Quem te leva importa (ou você está sendo observado): Assim que você entra numa comunidade (com uma máquina fotográfica em mãos), as pessoas começam a te observar e se perguntam quem é você e porque está fotografando. E uma das coisas que elas vão observar é com quem você está. A pessoa que te leva a uma comunidade é uma chave que pode abrir portas, ou tranca-las. Então, se possível, certifique-se de quem vai te introduzir naquela nova realidade. 
  4.  
  5. Os moradores divergem entre si: Por mais bem organizado que seja, todo movimento social/comunidade tem conflitos internos. As vezes as divergências têm fundo político, outras vezes é meramente pessoal.  Não tem como você, um recém chegado, saber. É importante que você não compre um lado da história. Tenha uma visão macro. As disputas internas não são interessantes de serem expostas, elas podem enfraquecer a luta central. 
  6.  
  7. Perca a foto: Perca muitas fotos. As pessoas querem ser ouvidas e nem sempre é uma boa hora de fotografar, às vezes é o momento de fazer conexões olho no olho. Quem está fotografando pode perder a habilidade de escutar. Ouça muito, fotografe depois. Com o tempo, você vai aprender a fazer as duas coisas ao mesmo tempo!
  8.  
  9. Retorne o seu material: Envie as fotos que você fez para as pessoas e para as organizações comunitárias ou parceiras da comunidade. É importante que elas possam se ver no material, mas não é só isso. As fotos são ferramentas de luta. Não é incomum que as comunidades em luta por direitos não tenham um arquivo de fotos para usar. Libere o uso do seu material em alta resolução para fins de militância. 
  10.  
  11. Organize o seu acervo: Vale aqui nos perguntarmos qual o papel do fotógrafo? Publicar nas redes sociais é muito importante para escoar o material, mas não pode ser a finalidade única. As suas fotos são A História. E a História não tem prazo de validade. Daqui uma, duas, três décadas o seu material pode estar narrando fatos por aí. Mas isso só vai acontecer se você deixar suas fotos identificadas e minimamente organizadas. Se ficar tudo dentro do celular/computador, sem informação alguma, nem você mesmo vai lembrar sobre o que são as imagens dentro de pouco tempo. Crie seu próprio método de organização e acervo, mas cuide da sua produção para que ela perdure. 
  • Ética na fotografia: descolonizar olhares
  •  
  • Eu delineei algumas dicas práticas. Mas acho importante falarmos sobre ética, pois a fotografia tende a ser uma técnica bastante predatória. Sua origem histórica está associada ao colonialismo. As expedições exploratórias de europeus para África e América, no século XIX, levavam fotógrafos que reproduziam, em suas imagens, muitos preconceitos, especialmente o racismo. Hoje em dia, estamos rediscutindo essa maneira de fazer imagem a partir da contracolonização, descolonização ou da fotografia popular (e muitas outras abordagens) mas a herança é muito forte e por vezes, mesmo os fotógrafos mais bem intencionados, reproduzem alguns padrões. Considero que três princípios éticos fundamentais para quem está começando a fotografar de modo engajado e militante. 

    1. Reconheça a incompletude dos estereótipos e fotografe os outros lados da história: O estereótipo é um rótulo, normalmente preconceituoso, que atribuímos a lugares e pessoas. A imprensa é campeã em mobilizar estereótipos em suas reportagens, mas a realidade é que todos nós diariamente, fazemos isso quando pensamos superficialmente sobre coisas que não conhecemos. Como fotógrafos ativistas podemos ajudar a completar as lacunas que faltam na história/narrativa das comunidades que documentamos e fugir dos estereótipos.  
    2.  
    3. Fotografe sempre a dignidade humana: Mesmo em face de uma grande violência as pessoas têm dignidade e elas, se puderem escolher, vão querer ‘estar bem na foto’. Por isso, mesmo que o tema do seu trabalho seja fotografar situações degradantes de vida/trabalho/saúde/etc. lembre-se que há pessoas ali com histórias, sonhos e afetos. Fotografe um estranho como se estivesse fotografando alguém que você quer bem. 
    4.  
    5. Lute também por um fazer fotográfico mais igualitário. Assim como diversas outras profissões você vai se deparar com um mercado de trabalho que, além de estimular a competição, é majoritariamente dominado por homens. A lei do mais forte na fotografia é a mesma da sociedade em geral: mulheres, pessoas racializadas, fotógrafos com deficiência, pessoas trans (entre outros) vão ter desvantagens nesse mercado. Infelizmente, é comum que entre colegas haja roubo de ideias, boicote, violência de gênero/classe/raça, exploração do trabalho etc. Todos nós, fotógrafos/as, devemos ser agentes de mudança dessa realidade. Para ir na contramão dessa lógica, siga firme na construção de trabalhos colaborativos com outros fotógrafos/as. 

    Por fim, ande em bando. Ande com outros fotógrafos/as que pensam como você porque isso vai aumentar a sua autoestima fotográfica quando tentarem desqualificar o seu trabalho porque você não tem o melhor equipamento ou simplesmente porque você não é um homem-branco-classe média/alta. E bom trabalho!

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