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A extrema-direita mora ao lado: como lidar com radicais nas eleições municipais

Pensamentos e comportamentos dos ultraconservadores ficam mais explícitos durante campanhas políticas. Mas e quando eles vêm do vizinho da rua?

Pessoas protestam em frente a uma casa, segurando bandeiras do Brasil

As eleições atualizam e exacerbam o discurso radical de direita

Foto: Ravi Kotecha / Edição: Vitória Rodrigues

A derrota nas urnas em 2022 e toda a visibilidade e repercussão sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro não foram suficientes para pôr fim à extrema-direita. Isso fica ainda mais explícito com a chegada de um novo período eleitoral. É justamente nessa época que as condutas de extremistas ganham palco e chamam atenção para com quem estamos lidando.  Pesquisadores da área política afirmam que é necessário saber identificar quem pode representar algum tipo de risco em cada um dos mais de 5.500 municípios brasileiros. Além dos candidatos ultraconservadores, parte do eleitorado também deve ser observado, já que, em muitos casos, ele pode ser o vizinho do lado. O que gera a pergunta, como lidar quando esse discurso não está na televisão, mas vindo pela janela?

O perigo é real, não apenas retórico

Maíra Berutti, comunicóloga e diretora de inteligência da Quid –  laboratório de comunicação para a disputa de opinião pública na defesa de valores democráticos e progressistas  – diz que é impossível ignorar os efeitos perigosos do voto em figuras da extrema-direita, que colocam a vida em risco.

“Temos o exemplo da postura negacionista frente à ciência, que reduziu os índices de vacinação no Brasil no pós Bolsonaro, ou como a guerra às drogas legitima o uso excessivo de força e cria um ambiente em que a violência policial é vista como necessária e justificável, causando o genocídio de jovens negros”, explicou.

Para ela, a extrema-direita continua sendo um movimento que aposta em discursos que colocam em risco a vida de determinados grupos na sociedade, gerando um ambiente de discriminação e violência. Por isso, é preciso ter cuidado com quem se autodefine bolsonarista. Se a relação com um vizinho, por exemplo, não for das melhores por conta de divergência política, durante as eleições é preciso evitar contato e principalmente não entrar em assuntos sobre política, partidos e agendas.

“O desgaste é certo e a mudança no ponteiro praticamente nula. É importante identificá-los e encontrar temáticas em que haja consenso, para que a partir dessas pautas se possa viabilizar um diálogo possível"​, explica Maíra.

Apesar de tudo isso, a pesquisadora acredita que é possível manter uma relação respeitosa e pacífica com um vizinho mais conservador. “O que observamos é que para além da bolha mais radical, há muito espaço para encontrar consenso principalmente em conversas mais relacionadas a políticas públicas. A polarização, ainda que seja uma realidade ao falarmos de eleições, não se materializa para temáticas relacionadas à saúde, educação ou meio ambiente, onde é possível e necessário fazer o debate de ideias”, afirma Maíra.  

Mas quando as opiniões são muito diferentes e os dois lados defendem pautas totalmente opostas, o cenário é outro. “Assim é difícil. Quando falamos de discursos que colocam em risco a vida de determinados grupos na sociedade, gerando um ambiente de discriminação e violência, a situação fica ainda mais grave”, disse. 

O doutor em Antropologia Social e Babalawó de Ifá Orlando Calheiros é também escritor e costuma refletir sobre os efeitos do bolsonarismo. Ele explica que nem todas as pessoas que votaram em Bolsonaro são extremistas. Há eleitores que tiveram motivações distintas, como insatisfações anteriores e promessas. Além disso, ele afirma que é preciso compreender que a verdadeira face de Bolsonaro não chega para todo mundo e que muitas pessoas estão ‘presas’ em redes que impedem essas informações de chegar até elas. Há quem acredite que as informações sobre seu verdadeiro comportamento sejam ‘propagandas’ dos opositores políticos.

“Os setores progressistas tendem a ver essas pessoas como uma massa hegemônica, quando as pesquisas mostram que não o são. Inclusive, é importante identificar as diferentes parcelas desse eleitorado para elaborar estratégias para que eles não sejam tragados para esse lado mais extremo do campo conservador”, afirma Calheiros.

Apesar de pensarmos instantaneamente que o adesivo no carro indique que a pessoa reproduz discursos extremistas, racistas, LGBTfóbicos e machistas, essa não é uma regra. Calheiros explica que há situações em que é possível ter uma convivência segura e tranquila. 

“Existem pessoas que, apesar de conservadoras, estão mais abertas ao diálogo, mas também existem aquelas que irão te ver como um inimigo. É importante saber diferenciar, entender se é possível se aproximar e como é possível se aproximar.  Entender o motivo que leva aquela pessoa a votar nesse ou naquele candidato e elaborar uma resposta para aquilo”.

E se a relação permitir e o eleitor da direita for alguém mais íntimo – conhecido, amigo, parente ou colega de trabalho – ainda é possível tentar virar não só o voto, mas também os ideais. “Quando estamos falando desse “núcleo duro” da extrema-direita estamos falando de pessoas que talvez estejam para além do nosso alcance imediato. É importante compreender isso. E nos focarmos não apenas nos indecisos, mas também nos eleitores que ainda podem ser influenciados pelos ideais progressistas”, afirmou Calheiros. 

De uma forma ou de outra, essas pessoas colaboraram com o fortalecimento da direita ou da extrema direita. O antropólogo acredita que quatro aspectos são fundamentais para explicar esse crescimento no Brasil e a sua consolidação como um campo. 

“O primeiro deles é a forma como o Brasil ‘escolheu’ promover a cidadania ao longo das últimas décadas. Cidadania pelo consumo. Estimulando a criação e consolidação de uma classe média. Essa classe média não é apenas um recorte econômico, ela é um grupo da sociedade que acaba tendo interesses muito próprios e alinhados com o projeto ultraliberal que rapidamente se alinha com a extrema-direita. O segundo é justamente o crescimento de algumas vertentes evangélicas alinhadas com essa cosmologia ultraliberal. O terceiro é justamente os interesses de alguns setores, como o agro, que se financiam a promoção dessas ideias. O último aspecto é a explosão das redes sociais, a forma como elas foram incorporadas pela população brasileira. Especialmente as redes de feed oculto, como o Whatsapp”, explicou.

Nesse contexto, Calheiros aponta que é importante que o campo progressista também cresça com organização e pensando em retomar campanhas de ocupação e produção de presença nos territórios. Por exemplo, apoiando comitês populares, fazendo ações contínuas nas periferias. O famoso trabalho de base. 

Manifestantes de extrema-direita tentam invadir o Palácio do Planalto, em Brasília

Tentativa e golpe em janeiro de 2023 / Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Extremistas no grupo do zap do bairro

Quando é preciso lidar com extremistas nas redes sociais, também é preciso ter cuidado. Se considerarmos que o WhatsApp é uma das principais ferramentas de debate político, chegamos ao ponto de que, no lugar de discutir com alguém a milhares de quilômetros, pode ser alguém que está no grupo da sua rua, bairro ou outro lugar bem próximo fisicamente. Verdadeiras campanhas de desinformação foram usadas durante as eleições de 2018 e a cena se repetiu de forma mais intensa em 2022. E agora volta à tona em 2024. 

Pablo Marçal, candidato a prefeito de São Paulo, não esconde que precisa de cortes estratégicos  de vídeos para chegar da forma que preferir em seus seguidores. Isso mostra que, para alguns candidatos, gerar situações e manipular eleitores durante a campanha faz parte do jogo. Marçal conta com um exército de pessoas contratadas para fazer esses cortes, já denunciadas pela Justiça Eleitoral. 

De todo modo, ele e outros candidatos extremistas seguem inundando as redes como essas mentiras, na certeza de que ganharão visibilidade, mesmo que seja falando mal. A própria imprensa, que por um lado critica as ações do coach, vê o número de cliques e acessos das matérias aumentar quando embarcam nas polêmicas. Assim, por mais que haja um discurso de reprovação, fazem o serviço de catapultar o nome dos candidatos a um público que talvez ainda não os conheça. 

O dilema para os ativistas é se vale ou não debater quando esses conteúdos chegam. Uma estratégia é denunciar os usuários ou perfis disseminadores de discurso de ódio, e em caso de perfis profissionais, ocultar os comentários. Sabendo, porém, que as redes sociais – assim como parte da imprensa – estão mais preocupadas com o fluxo, acesso e permanência do que com a veracidade das informações. Então a exclusão de perfis nunca segue a velocidade de propagação das mentiras. 

“É importante lembrar que a dinâmica de engajamento em conteúdos assim pode inclusive resultar em seu maior impulsionamento e visibilidade na rede, portanto, evitar interagir é de fato uma estratégia não só para saúde mental mas para diminuir o alcance dos conteúdos”, disse Maíra.  

Combater a desinformação e mensagens de ódio também cria o problema de que, com isso, perdemos o foco que deveria ser levar nossas mensagens para mais e mais pessoas. “Muitas vezes olhamos apenas para os nossos ‘inimigos’ e nos esquecemos que eles crescem, justamente, na nossa incapacidade de propagar as nossas mensagens”, afirmou Calheiros.

Extrema-direita reconfigurada

A ascensão da extrema-direita no Brasil ainda é sentida e a sociedade carrega nas costas a pressão e os impactos de uma grande ameaça à democracia. Mas Maíra, pesquisadora da Quid, acredita que o bolsonarismo já não é o mesmo. O movimento precisou se reconfigurar para continuar existindo. Antes centrado em em uma figura única, tornou-se descentralizado. É o que também mostra o fenômeno Pablo Marçal. 

“Isso sinaliza um contexto de ruptura no bolsonarismo, com um candidato que tem atraído os eleitores mesmo sem o apoio formal de sua principal liderança. O que sugere que o bolsonarismo não se limita mais a Bolsonaro, mas se torna um espectro de ideais conservadores que pode ser representado por novas lideranças que não compartilham necessariamente do estilo ou das atitudes de Bolsonaro”, afirmou Maíra. 

Calheiros concorda que outras faces carregam o nome do movimento e já escreveu que a extrema direita não precisa de Jair Bolsonaro para espalhar suas ideias. Mas para ele, o bolsonarismo chega em 2024 enfraquecido e lutando desesperadamente para manter a hegemonia da direita.

“Bolsonaro foi antes de tudo um sintoma. Passamos os últimos anos tentando identificar as causas desse vírus, como esse vírus infecta outras pessoas e conseguimos estabelecer algumas respostas. Digo no sentido prático mesmo. Eles perderam a eleição, não é mesmo? O problema é que a doença está se transformando, produzindo outros sintomas, como Marçal, como Nikolas. E talvez ainda não tenhamos respostas para eles”. 

A verdade é que apagar completamente o bolsonarismo pode ser improvável, mas é possível reduzir sua influência. Só por meio de um esforço coletivo, que inclui a população brasileira e os setores da sociedade, será possível construir um futuro mais justo e igualitário e com convívio amistoso.

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Letícia Queiroz

publicado em

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