Por Valeriana Augusta Broetto, Tatiane Brasil, Leilane Reis Santos, Erika Pires Ramos, Vivian Dal´Lin, Marília Papaléo Gagliardi, da Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais (RESAMA)*
18/07/2024
O aumento da frequência dos eventos climáticos extremos têm deslocado e vulnerabilizado cada vez mais pessoas no Brasil. Em artigo, pesquisadoras da Resama opinam sobre o quadro e sobre caminhos de luta e reparação
Apesar de o Brasil ser considerado o país com maior número de deslocamentos internos causados por desastres nas Américas em 2023, tendo sido responsável por mais de um terço dos deslocamentos causados por desastres na região, ainda não há legislação específica para proteger e garantir os direitos e a segurança da população afetada e deslocada por esses eventos de forma integral. No mundo, são 68,3 milhões de pessoas deslocadas internamente no ano passado, seja em razão de conflitos, ou por desastres, em sua grande maioria relacionados a eventos climáticos (como inundações e tempestades, além de secas, incêndios florestais e outros). Entender as distintas dimensões da mobilidade humana no contexto da mudança climática e dos desastres é o primeiro passo para se pensar em políticas capazes de proteger os direitos humanos da população.
A adoção de uma definição para essa nova categoria de pessoas gera dúvidas e provoca debates, especialmente no âmbito jurídico. Termos como “migrante”, “deslocado” e “refugiado” ambiental ou climático são usados para descrever indivíduos ou grupos que se mudam ou são forçados a mudar devido a riscos e alterações no ambiente, causados por eventos naturais ou atividades humanas, que impactam significativamente sua vida, segurança, meios e modos de vida.
Não existem na atualidade instrumentos internacionais vinculantes que reconheçam estas categorias e concedam proteção jurídica específica. Na agenda climática, tem-se utilizado o termo “mobilidade humana” que abrange migração, deslocamento e realocação planejada, incluindo também situações de imobilidade, em que as circunstâncias ambientais (que geram isolamento) e/ou recursos materiais não permitem que a mobilidade aconteça ou há resistência em deixar o território e os vínculos ancestrais/culturais ali presentes.
A migração, nesse contexto, envolveria pessoas que deixam de forma majoritariamente voluntária seus locais de origem, utilizando a mobilidade como resposta a mudanças ambientais e climáticas, em busca de locais seguros que garantam sua subsistência e proteção de direitos. Por outro lado, o deslocamento ocorre quando indivíduos são forçados a deixar suas residências como única opção de sobrevivência, sem possibilidade de escolha. Já a realocação planejada pressupõe a assistência do Estado e ocorre quando a permanência ou o retorno não é mais possível ou é inviável devido a situações de risco. Em todos os casos, as pessoas devem ter assegurados os seus direitos, especialmente o de participar em todas as decisões relacionadas ao retorno e à realocação (Cavedon et al., 2023). Assim, todas essas formas de mobilidade humana e também as situações de imobilidade devem ser consideradas nas agendas urbana, ambiental, climática, de direitos humanos e também migratória.
Ainda que não exista um consenso sobre a terminologia a ser utilizada ou respaldo em alguma normativa, distintos marcos internacionais e regionais fornecem diretrizes para o desenvolvimento e implementação de políticas e ações voltadas para pessoas deslocadas por desastres.
Atingidos pelas chuvas na região Serrana do Rio de Janeiro se abrigam em ginásio l Foto: Vladimir Platonow / Agência Brasil – Arquivo
Mudança climática, desastres e violações de direitos humanos no Brasil
Globalmente, os efeitos adversos da mudança climática ameaçam os sistemas humano e natural, colocando em risco os direitos humanos, especialmente os das populações mais vulnerabilizadas. O Relatório de Riscos Globais de 2024, elaborado pelo Fórum Econômico Mundial, prevê um risco elevado de eventos climáticos extremos nos próximos dez anos, juntamente com o aumento do risco de migrações involuntárias.
No Brasil, o cenário climático é igualmente preocupante. Nos últimos anos, mais da metade dos municípios brasileiros decretaram situação de emergência ou calamidade pública em razão de desastres relacionados à, dentre outros, estiagens, secas, tempestades, inundações, enxurradas e alagamentos. Em 2022, por exemplo, mais de 230 pessoas perderam a vida em Petrópolis (RJ) após fortes chuvas; em Recife (PE), deslizamentos de terra provocados por fortes chuvas resultaram em 140 mortes, 122 mil pessoas desalojadas, 68 mil casas danificadas e 3 mil destruídas. Em 2023, fortes chuvas também desencadearam alagamentos e deslizamentos em Manaus(AM) e no litoral norte de São Paulo, onde houve um elevado número de mortes e de pessoas desalojadas. Também não se pode esquecer das secas recentes com dimensões gravíssimas na Amazônia, inclusive com o isolamento de comunidades inteiras e com impactos sobre a manutenção dos meios e modos de vida.
Ao mesmo tempo em que evidenciam a gravidade da crise climática, tais eventos escancaram o despreparo das cidades brasileiras em prevenir, responder e se adaptar aos eventos climáticos, especialmente no que diz respeito aos grupos e comunidades mais expostas. Embora a mudança climática seja um fenômeno global, seus impactos são desiguais e desproporcionais e estão relacionados a uma série de fatores sociais, econômicos e ambientais que tornam pessoas e lugares mais suscetíveis a sofrerem grandes perdas. Por isso, é preciso compreender que desastres não são naturais e sim um resultado de escolhas humanas e decisões políticas.
Ainda que as ameaças que os desencadeiam possam ser de origem natural, os desastres – enquanto resultados da combinação de condições de vulnerabilidade, ameaças e insuficiente capacidade de resposta – não são, já que poderiam ser evitados ou mitigados através de medidas de adaptação e redução de riscos. Nesse contexto, grupos historicamente marginalizados são os mais afetados pelos eventos extremos.
Fatores como raça, gênero e classe evidenciam de forma contundente essas injustiças climáticas e ambientais. No desastre recente do Rio Grande do Sul não foi diferente. Apesar de quase a totalidade do estado ter sido afetada, mulheres, povos indígenas e quilombolas, pessoas negras e pobres, população migrante e refugiada, seguem enfrentando graves violações de direitos humanos após dois meses do início do desastre, evidenciando as dinâmicas do racismo ambiental e climático que enfrentam no seu cotidiano.
É o caso, por exemplo, da comunidade indígena Guarani Araçaty que teme deixar suas casas e perder seu território, ainda não demarcado, tendo de enfrentar um duplo risco. Já o povo Guarani Pekuruty, ao retornar a sua aldeia, se deparou com parte das moradias e uma escola demolidas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (DNIT), sem aviso prévio. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) e o Ministério dos Povos Indígenas afirmam que 70% dos territórios destinados à população indígena do Rio Grande do Sul foram afetados. Com o retorno desses povos para os seus territórios, teme-se uma crise humanitária, especialmente no que se refere à saúde.
Já em Pelotas, outra situação escancarou o racismo ambiental. Um condomínio de luxo instalou bombas de drenagem clandestinas para retirar a água do seu terreno, fazendo-a desembocar na comunidade Passo dos Negros, histórico reduto da comunidade negra e uma das áreas mais carentes da cidade. Mapas desenvolvidos pelo Observatório das Metrópoles mostram que as áreas mais atingidas são as menos favorecidas economicamente e coincidem com os bairros de maioria preta e parda. A lista de violações é grande, incluindo violência sexual contra mulheres em abrigos públicos; ondas de saques que levaram famílias inteiras a improvisar acompamento nas rodovias para monitorar suas casas; remoções compulsórias de pessoas em áreas de risco; xenofobia, segregação e exclusão de migrantes e refugiados em abrigos; e ações que podem ser descritas como “capitalismo do desastre“, ou seja, a utilização da situação de desastre como oportunidade para lucrar ou implementar medidas que ameaçam ainda mais os direitos humanos.
Além das graves violações de direitos humanos, é crucial considerar os impactos na natureza. Milhares de animais domésticos e silvestres foram afetados pelas enchentes e agora estão sendo acolhidos em abrigos. Cientistas também alertam que as grandes obras planejadas pelo governo como resposta ao desastre podem intensificar a degradação dos ecossistemas e representar novas ameaças à biodiversidade.
Mas os impactos desproporcionais enfrentados por determinados grupos não param por aí, sobretudo porque um desastre não se encerra na situação de emergência e pode se prolongar no tempo. É pelas distintas dimensões e características da mobilidade humana e também pelas situações de imobilidade – como algumas comunidades quilombolas que ficaram totalmente isoladas pelas chuvas – no contexto dos desastres e da mudança climática que queremos chamar a atenção para esse fato.
Aos milhares de desalojados e desabrigados em caráter temporário, somam-se os indivíduos e comunidades que foram deslocadas pelo desastre ou que agora planejam migrar. Ao perderem suas casas, territórios e meios de subsistência, as pessoas que já estavam em uma situação de vulnerabilidade, ficam ainda mais expostas à violações de direitos humanos e nem sempre conseguem retornar ao seu lugar. Assim, pessoas desabrigadas ou desalojadas podem se tornar deslocadas à medida que o cenário do desastre ou efeito da mudança climática se desenrola; da mesma forma como os deslocamentos temporários podem se prolongar no tempo e se tornarem permanentes.
As populações vulnerabilizadas que não têm alternativas viáveis, são frequentemente direcionadas para abrigos temporários que oferecem pouco ou nenhum espaço privado, deixando-as constantemente expostas a diversas formas de violência. Em outros casos, elas podem recorrer ao auxílio aluguel privado temporário, o que ainda assim gera insegurança em relação ao futuro. Ambos os casos, são “relevantes na desestruturação do convívio familiar e identidade social de seus membros” (Valencio, 2009).
Nesse contexto, precisamos refletir sobre como nossas cidades vão lidar não apenas com os desastres, mas também com as repercussões dos deslocamentos e migrações em termos de oferecimento de infraestrutura e serviços urbanos adequados e de áreas seguras para moradia, respeitando laços afetivos e sociais, as trajetórias de vida e as vozes das comunidades. Tudo isso é fundamental para evitar novos desastres no futuro e reduzir a vulnerabilidade das populações e ecossistemas. Chama-se a atenção para as discussões sobre a remoção de populações, a realocação de cidades inteiras – como é o caso de Muçum (RS) – e a construção de “cidades provisórias“. Ainda que em contextos diferentes, na década de 1960, o Rio de Janeiro passou por processo semelhante, em que Centros de Habitação Provisórias (CHB) foram construídos para atender famílias removidas de outros locais da cidade. Embora pensadas de modo provisório, muitas delas perduram até hoje, como é o caso da Favela Nova Holanda localizada no Complexo da Maré.
Nessa perspectiva é que a Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais (RESAMA) busca dar visibilidade a essa dimensão humana muitas vezes desconsiderada nas agendas e políticas públicas. Pessoas que são forçadas a migrar, seja em razão da perda temporária ou permanente da sua moradia, ou que resistem buscando estratégias de adaptação no seu território, precisam estar presentes na construção de alternativas ao deslocamento.
Chuvas que afetaram o Rio Grande do Sul deixaram um rastro de destruição sem precedentes l Foto: Rafa Neddermayer/Agência Brasil/EBC
Encurtar distâncias entre o global e local, entre governos e territórios afetados: trilhando caminhos possíveis
Temos que reconhecer que não existe uma receita ou solução pronta e única para lidar com a magnitude e intensidade dos desastres desencadeados pelos efeitos da crise climática. As soluções devem ser construídas coletivamente e com a participação dos múltiplos atores envolvidos, garantindo a participação efetiva das pessoas, comunidades e territórios afetados, e considerar não apenas suas vulnerabilidades, mas também os conhecimentos e capacidades existentes nos territórios para enfrentar a crise climática. É preciso, portanto, que suas demandas e suas vozes sejam efetivamente consideradas nos processos de formulação de políticas e tomada de decisão.
Mesmo não existindo atualmente uma categoria específica prevista em um instrumento internacional vinculante que abranja quem precisa se deslocar em razão de riscos e/ou desastres ambientais e climáticos, importante registrar as diretrizes existentes em nível global e regional existentes nesta temática: i) Agenda Nansen para a proteção de pessoas deslocadas através de fronteiras no contexto de desastres e mudanças climáticas; ii) o Guia “Das Palavras à Ação”; e iii) os Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos de 1998.
No Brasil, a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil existe desde 2012 (Lei Federal n. 12.608/2012), mas apenas recentemente foi elaborado o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil. Também está em construção o Plano Clima Adaptação – que busca aumentar a resiliência à mudança climática abrangendo o período de 2024 à 2035 – e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano – que visa reduzir as desigualdades socioespaciais e apoiar a agenda local de desenvolvimento urbano. Mais recentemente, também foram aprovadas as diretrizes para a elaboração dos planos nacionais de adaptação através do Projeto de Lei n. 4.129/2021 (transformado na Lei Ordinária n. 14904/2024). No entanto, a temática do deslocamento permanece invisibilizada nessas agendas.
Recentemente, porém, foi apresentado o Projeto de Lei n. 1.594/2024 que propõe a criação de uma Política Nacional dos Deslocados Ambientais e Climáticos (PNDAC). Esse texto define quem são as pessoas deslocadas por desastres e estabelece diretrizes para estratégias integradas de apoio e reconstrução de suas vidas. O projeto garante direitos como resposta humanitária, saúde, educação, trabalho, assistência social, moradia e justiça, por meio da coordenação com programas governamentais existentes.
Embora o PL n. 1.594/2024 tenha sido o primeiro a tratar sobre os deslocamentos climáticos e ambientais – e tendo como base as experiências em primeira pessoa de Naira Santa Rita (deslocada climática do desastre de Petrópolis de 2022), vale mencionar outros projetos de lei protocolados posteriormente, que se encontram em tramitação: o PL n. 1.646/2024 que visa definir a condição de deslocado interno devido a questões climáticas no Brasil; o PL n. 2.038/2024 (iniciativa legislativa originada no Senado Federal) que visa instituir a Política Nacional para Deslocados Internos e o PL n. 2043/2024 que visa instituir a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Desastres Naturais (PNADN). Também merecem registro: o PL n. 5.002/2023 (também de iniciativa originada no Senado Federal) que propõe a criação da Política Nacional de Gestão Integral de Risco de Desastres, o Sistema Nacional de Gestão Integral de Risco de Desastres – SINGIRD e o Sistema de Informações sobre Gestão Integral de Riscos de Desastres – SIGIRD e, no âmbito do Poder Executivo, a criação do Grupo Técnico de Trabalho Temporário no âmbito do Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima – CIM para atualização da Política Nacional de Mudança do Clima (PNMC), instituída pela Lei n. 12.187/2009.
Alguns pontos essenciais para o desenvolvimento, implementação e monitoramento de políticas públicas eficazes centrada nas pessoas afetadas e deslocadas pela crise climática merecem atenção. Um deles diz respeito à produção e coleta de dados desagregados (considerando os marcadores sociais de gênero, raça, classe, etnia, nacionalidade, região/território, idade, capacidades, entre outros), a fim de permitir identificar quem são, onde estão e quais as necessidades e demandas específicas de cada grupo devem ser priorizadas e garantidas a curto, médio e longo prazo.
Não se pode esquecer, contudo, que toda a sociedade precisa acompanhar e ter garantida sua efetiva participação nesses processos em todos os níveis de governo. Para isso, deve-se ampliar o máximo possível os espaços de escuta das demandas e de construção coletiva de soluções, especialmente às comunidades e territórios que já estão na linha de frente dos impactos da crise climática no seu cotidiano. A participação social, nesse contexto, é essencial para garantir políticas, ações e medidas efetivas e adaptadas às diferentes necessidades e contextos locais e culturais.
O que ainda precisamos aprender é que as políticas públicas exitosas, especialmente na América Latina, devem servir de inspiração para adaptação e as soluções devem ser construídas com as populações locais. Como exemplo, podemos mencionar nossos hermanos cubanos. Em 2005, cerca de 14.100 habitações foram destruídas na província de Granma pelo furacão Dennis. Devido ao alto risco de desastres da área em vez de reconstruir ou reformar as casas normalmente, a política do Governo cubano optou como estratégia construir residências com melhorias e sem afetar o meio ambiente. Uma a cada dez residências foram construídas com características de refúgio para proteção de furacões futuros. O governo também apoiou com recursos materiais a construção subterrânea para proteção de alimentos e instrumentos de trabalho, experiência generalizada a toda a província e ao país, desenvolvida por agricultor local (Enrique Carrazana Leyva, do município de Guisa, Granma).
No caso do Rio Grande do Sul, a construção de habitações temporárias ou permanentes para os deslocados deve passar por adaptação para proteção frente à nova realidade de eventos extremos, garantia de manutenção de seus modos de vida e identidade cultural. Caso contrário, serão reproduzidos os processos de segregação socioespacial – produtos do racismo e das desigualdades estruturais – e das injustiças ambientais e climáticas já conhecidas.
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A Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais (RESAMA), fundada em 2010, trabalha para visibilizar a dimensão humana das mudanças climáticas e desastres, com enfoque no impacto na mobilidade humana (migrações, deslocamentos e realocações) e imobilidade nos distintos grupos, territórios e comunidades afetadas. Leilane Reis Santos é doutora em direito pela PUC/RJ, professora de direito internacional e consultora de raça e gênero. Erika Pires Ramos é Advogada Pública, Doutora em Direito Internacional pela USP e fundadora da RESAMA. Valeriana Augusta Broetto é advogada, mestre em Direito Ambiental pela USP e doutoranda em Ciência Ambiental pela mesma universidade. Vivian Dal’Lin é Arquiteta e Urbanista, especialista em Planejamento e Gestão de Cidades pela USP e mestranda em Gestão e Políticas Públicas pela FGV. Marília Papaléo Gagliardi é advogada de direitos humanos formada pela PUC/SP e mestranda em Direito Internacional Público com foco em migração climática pela USP. Tatiane Brasil é Geógrafa, pós graduada em Urbanismo Social e mestranda em Políticas públicas, ambos pelo INSPER.