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Homens trans usam futebol como ferramenta de articulação política e transformação social

Conheça três times de futebol de homens trans que contam uma história de sociabilidade, resistência, inclusão e companheirismo

Time da Transviver disputando campeonato

Foto: Bruno Silva/Cortesia

Um reencontro com o futebol, um encontro consigo mesmo. É assim que o atual coordenador do time de futsal da ONG Transviver, Bruno Silva, define sua entrada no projeto, fundado no Recife em 2018, com o objetivo de engajar homens transgêneros na prática esportiva.

“Eu trabalhava no Cinema São Luiz e estava acontecendo o Recifest, um festival de cinema da diversidade, onde colocaram uma bandeirinha do time da Transviver. Era o começo da minha transição e procurei um grupo, que foi um divisor de águas na minha vida”, lembra.

Apaixonado por futebol, Bruno havia deixado de praticar o esporte em razão da dificuldade de integração com equipes compostas por pessoas cisgêneras — isto é, que se identificam com o sexo biológico que lhes foi atribuído ao nascer — e encontrou no grupo um espaço de acolhimento fundamental para seu processo de autoidentificação. Para ele, em todo o país, há um aumento do número de times de futebol compostos por transmasculinos, fenômeno que atribui à capacidade desses espaços de promover a sociabilidade e, por vezes, de oferecer diversas formas de assistência, funcionando como uma importante ferramenta de articulação política de seus integrantes.

“O time foi fundamental no início da minha transição, pois foi lá que descobri, por exemplo, a localização dos centros de referência e acolhimento, assim como recebi indicações de atendimento médico seguro. Outro fator importante foi a troca de experiência com outros homens trans, que muitas vezes enfrentam situações semelhantes de preconceito e reações fisiológicas parecidas durante o processo. Nessas trocas, a gente acaba se vendo no outro e conseguindo lidar melhor com tudo”, comenta.

Nos treinos, o trabalho em grupo vai muito além das quatro linhas. Atento às dinâmicas estabelecidas pelos jogadores entre si, Bruno faz questão de suscitar debates importantes para a socialização do grupo, como a reprodução do machismo e a importância da construção de uma cultura de acolhimento entre eles.

“Na ânsia de se afirmarem homens, alguns participantes acabam tendo posturas que não aprovamos. Em nossos encontros, a gente debate bastante com aqueles que estão chegando, para passar com muita calma e paciência nossa forma de ver as coisas. Os debates também servem para compartilhar nossas indignações relacionadas à transfobia e ao machismo, buscando formas de superar esses desafios”, completa Bruno.

O Mandabusca, time de futebol que também é um espaço de articulação política no interior do Estado de São Paulo 

Foto: Ray Godoy Cavalheiro/Reprodução

Ferramenta de luta

Único time voltado para homens trans em Sorocoba, no interior Paulista, o Mandabusca conta com nada menos do que 70 integrantes. “Iniciamos nossas atividades em 2021, treinando com cerca de cinco pessoas, num parque aqui da cidade, chamado Parque das Águas. Resolvemos criar uma página no Instagram e mais pessoas foram aparecendo. O grupo atual inclui tanto as pessoas que estão conhecendo o time quando aqueles que são mais ativos”, explica Lucca Spinelli, fundador da equipe.

Para ele, a ampla adesão ao Mandabusca se deve à falta de espaços de assistência social às pessoas trans em Sorocaba. “Temos integrantes entre 14 e 48 anos, que buscam acolhimento, ajuda com a transição, retificação de nome e até conversar com um terapeuta, através da nossa rede de apoio. Muitos deles, não chegam em busca do futebol, mas de alguma forma de auxílio e depois passam a praticar o esporte”, comenta Lucca.

Além do time de futebol, o único espaço de acolhimento a transmasculinos em Sorocaba é a Associação de Transgêneros de Sorocaba (ATS). Juntas, as instituições têm travado uma árdua batalha em defesa dos direitos da comunidade trans no município, administrado pelo conservador Rodrigo Manga (Republicanos), que, em dezembro do ano passado, encerrou os atendimentos de processo transexualizador no Hospital Santa Lucinda.

“Existe uma portaria que garante que toda cidade do estado de São Paulo tem direito a um ambulatório para pessoas trans. O prefeito, um bolsonarista sem escrúpulos, já fechou diversas vezes esse ambulatório. Só no meu grupo, temos 70 pessoas sem acesso a atendimento de saúde”, denúncia Lucca.

De acordo com ele, a desassistência leva a população da cidade a entrada no uso de hormônios sem qualquer supervisão médica. “Sorocaba é uma cidade bolsonarista e extremamente conservadora. No desespero pela aceitação muitos estão tomando hormônio por conta própria. Quando as pessoas sabem que somos trans, não conseguimos emprego”, desabafa.

Ao lado dos companheiros de time e da ATS, ele tem articulado mobilizações para cobrar a garantia do acesso à saúde para a população trans do município. “Fizemos protesto cobrando a volta do ambulatório, que a prefeitura diz que funciona, mas não funciona, denúncia no Ministério Público e temos feito o possível para auxiliar nossos integrantes na retificação de seus documentos. A situação é surreal. A existência do Mandabusca é fundamental para a comunidade trans de Sorocaba”, conclui Lucca.

O Trans United FC 

Foto: Rodrigo Arcanjo/Cortesia

Falta de apoio

Embora já figurem em algumas competições esportivas, os times de futebol compostos por pessoas trans costumam encontrar dificuldades para arcar com a participação nos eventos. “A gente percebe que as pessoas cis tem uma vida mais estabilizada, com amigos e conhecidos que oferecem patrocínio, coisa que não conseguimos. Além disso, muita gente questiona o porquê de a gente não querer jogar contra pessoas cis, ignorando o fato de que elas sempre tiveram espaço para jogar, sem nunca interromper esse hábito por causa de uma transição. As pessoas trans nem sempre puderam, foram parando de praticar o esporte, o que faz com que o nível técnico caia”, lamenta Rodrigo Arcanjo, fundador e treinador do Trans United FC, equipe do Rio de Janeiro formada por mais de vinte atletas trans.

Campeão sul-americano de kung fu, Rodrigo escreveu através do esporte alguns dos capítulos mais importantes de sua vida. “Desde criança, antes da transição, eu jogava bola. Aos 11 anos de idade, no período em que minha família se mudou para o Espírito Santo, entrei em um time só de meninos. Para poder disputar as primeiras competições, o clube entrou com ações na justiça”, lembra. 

O bom desempenho esportivo rendeu a Rodrigo, aos 15 anos de idade, uma Bolsa Atleta, benefício que o poder público oferece para incentivar a profissionalização da prática esportiva. A conquista, contudo, forçou o afastamento do lutador de sua outra paixão. “Minha mãe não me deixava jogar bola, porque tinha medo de me machucar e me prejudicar nas competições, então tive que parar com o futebol. Eu treinava pela manhã, estudava à tarde e treinava de novo à noite”, relata Rodrigo. Na época, o desejo de voltar aos gramados ainda motivou sua participação nas peneiras de grandes clubes, como o Santos e o Vasco. “Não vi muito futuro no futebol feminino, que era a categoria que eu disputava na época, estava querendo fazer faculdade, iniciei minha transição e acabei desistindo”, completa.

Após uma passagem pelo Big T Boys, outro time formado por pessoas trans no Rio de Janeiro, Rodrigo resolveu fundar o Trans United FC. “Parte do grupo veio comigo e hoje incentivamos também a participação de mulheres trans. Temos duas em nosso grupo”, ressalta. As dificuldades apareceram logo no início do projeto, com a falta de recursos para garantir um local seguro para os treinos. “No início, nossa quadra tinha uma mensalidade de R$ 800 e muitos me procuraram para dizer que não estava dando para pagar. A gente não podia contar com o espaço público, porque não era seguro para o grupo. Agora, conseguimos a autorização da administração para jogar no Parque Madureira nas noites de segunda, em um horário em que ele fica fechado para outras pessoas”, ressalta. 

Com a concentração dos campeonatos da diversidade no estado de São Paulo, o desafio de gerir um time trans inclui os custos com deslocamento da equipe. Rodrigo conta que, por vezes, precisou assumir os gastos para não deixar ninguém de fora. “A gente sabe que muitos homens trans não conseguem acesso a uma formação profissional ou a um emprego. Como muitos não têm condição de bancar nem alimentação, a gente só viaja com essa garantia para todos. Além disso, vejo a alegria do pessoal quando a gente consegue fretar um ônibus, o clima legal de uma equipe viajando para jogar futebol. Para muitos, é a realização de um sonho”, afirma. 

A chegada nas competições, contudo, nem sempre é fácil. Não são raros os relatos de transfobia contra atletas mesmo nos eventos organizados pela comunidade LGBTQUIAP+, que costumam ocupar toda a agenda dos times compostos por pessoas trans. “A transfobia começa nas súmulas, que não respeitam os nomes sociais de muitos atletas os quais ainda não tiveram acesso à retificação. Além disso, as arbitragens insistem em nos chamar pelos pronomes incorretos, a ponto de eu precisar intervir porque meus atletas não estão sendo respeitados”, lamenta Rodrigo. 

Apesar dos desafios, o treinador vê a potência política do time como o principal motivo para não desistir da iniciativa. “Nosso modo de fazer política é existir. É entrar na Vila Olímpica, no meio dos homens cis, com nossa bandeira, para fazer com que vocês entendam que a nossa militância é através do esporte e que vamos ocupar esses lugares sim”, destaca. 

“Uma nova família”

O atendente de telemarketing Bernardo Valentim, de 24 anos, um dos atletas que integram o Trans United, conta que descobriu o time por intermédio de uma amiga, em um momento crucial de seu processo de autoaceitação. “Não tinha contado para meus familiares que era um homem trans, apenas falei que me sentia atraído por mulheres, o que já fez com que eles me rejeitassem. Eu entrei em depressão, nem me olhava no espelho. Através do time, vi que corpos trans existiam, fiz amigos como o Luan e o Dante, que foram me mostrando que era normal ser como nós somos, que eu não deixava de ser homem por ter a voz mais fina ou por não ter passado por uma cirurgia”, comenta. 

Oriundo de uma família de militares, Bernardo chegou a ingerir uma dose alta de medicamentos em razão da tristeza com o afastamento de entes queridos. “No hospital, deram como uma tentativa de suicídio. Nesse momento, minha amiga pegou meu celular e ligou para o Rodrigo, explicando toda a situação e o porquê de eu não estar indo aos treinos. Desde então, todos os dias, o time mandava mensagens, fazia videochamadas, dizendo que eu estava fazendo falta. Vi que eu não estava sozinho e que eu tinha uma nova família”, lembra.

Para o coordenador nacional do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), Fabian Algarte, os espaços de integração através do esporte são fundamentais para a comunidade. “O esporte é um espaço de construir trocas, fazer amigos, de cuidado com a saúde física e mental, então os espaços transcentrados, feitos pela população trans, oferecem maior segurança e apoio, para além da prática esportiva. Isso melhora a qualidade de vida e também a sensação de pertencimento social, de não estar sozinho, de fazer parte de um grupo e de conhecer pessoas parecidas com você”, destaca. 

Fabian ressalta que, embora iniciativas do tipo ainda sejam raras no Brasil, elas têm aparecido com maior frequência nos últimos anos. “Principalmente por causa da alta divulgação. A gente tem times de futebol que começam a se divulgar nas redes sociais, a divulgar sua logo e a chamar gente para participar. Isso passa a fomentar essa ideia em outras cidades, outros espaços, em que as transmasculinidades começam a ver que poderiam fazer o mesmo.  E aí não é só no futebol, acontece em outros esportes e também nas artes e na cultura”, explica.

Serviço// Redes Sociais 

Transviver: @transviver

Trans United: @transunitedfc 

Mandabusca: @mandabuscaft

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