Por Luiza Ferreira – 08/03/2024
Como mulheres e pessoas que gestam na América Latina estão mudando leis injustas para garantir que aborto seja um direito, não um crime
A “onda verde” na Argentina conquistou a legalização do direito ao aborto l Foto: Emergentes via Brasil de Fato/CC
No dia 30 de setembro de 2023, a ministra Rosa Weber se aposentou do Supremo Tribunal Federal (STF), pouco antes de completar 75 anos, idade constitucional limite para integrar a Corte. Dezoito dias antes de se aposentar, ela assumiu a presidência do STF e no mesmo dia liberou para julgamento uma ação apresentada pelo PSOL e pelo Instituto de Bioética (ANIS) em 2017 sobre a descriminazação do aborto. Faltando oito dias para o fim de seu mandato, no dia 22 de setembro, em voto de 129 páginas, a ministra, que é relatora do caso, disse sim para que o aborto deixe de ser considerado crime se provocado até as primeiras 12 semanas de gestação.
Para a ministra, os artigos 124 e 126 do Código Penal não estão de acordo com a Constituição Federal atual, e a pena atribuída a gestante que realiza o aborto é desproporcional. A criminalização do aborto voluntário, diz ela, que aplica sanções penais às mulheres e aos profissionais que realizam tais procedimentos, “versa questão de direitos, do direito à vida e sua correlação com o direito à saúde e os direitos das mulheres”.
No entanto, o julgamento foi suspenso depois de um pedido de destaque do ministro Luís Roberto Barroso. Tal pedido diz respeito a levar o julgamento para o plenário físico, pois ele acontecia em ambiente virtual da Corte.
No Brasil, o aborto só é permitido em caso de gravidez decorrente de estupro, risco para a vida da pessoa que gesta e se o feto for portador de anencefalia. Se uma mulher ou pessoa com útero provoca um aborto ou autoriza alguém a realizar o procedimento em qualquer outra situação, a pena de detenção aplicada é de um a quatro anos, tanto para a pessoa que gesta quanto para a pessoa que auxiliou a realização da interrupção da gravidez.
“Embora tenhamos uma decisão no STJ que médicos não podem denunciar uma mulher ou pessoa com útero por abortos clandestinos, sabemos que, na prática, isso ainda pode acontecer e o entendimento dos juízes, especialmente de primeira instância, podem não ser o mesmo do Supremo. Então uma mulher que recorre ao aborto inseguro acaba se sujeitando a muitos riscos, seja com uma clínica clandestina, com medicamentos falsos, com métodos caseiros perigosos”, comenta Maria Paula Monteiro, jornalista, ativista e uma das fundadoras do Coletivo Feminista Várias Marias, em Sete Lagoas, Minas Gerais.
Para ela, o aborto é uma prática que nunca deixará de existir, mesmo que seja criminalizada. Por isso mesmo, a descriminalização representa um grande avanço em termos de justiça reprodutiva, e é papel do Estado se responsabilizar pela garantia do direito à vida e à saúde de pessoas que gestam.
Fundamentalismo religioso: entrave contra o direito da mulher
Segundo Maria Paula, um dos maiores desafios do Brasil hoje é a força que tem o discurso fundamentalista na política. Discurso esse que encontra vazão no pensamento cotidiano de uma população extremamente religiosa: segundo a pesquisa Global Religion 2023, do Instituto Ipsos, 89% dos brasileiros acreditam em um poder superior e 76% seguem uma religião.
Para a ativista, são poucas as igrejas que não misturam a fé com a política, e, com uma grande parte da população sendo religiosa e o número de grupos neopentecostais crescendo exponencialmente nos últimos anos, o discurso pró-vida entra em cena contra o menor sinal da pauta sobre o direito ao aborto alcançar novas proporções.
“Levantam a bandeira contra o aborto, sob a crença de que assim são “a favor da vida” e demonizam totalmente mulheres que fazem a decisão por interromper a gestação, seja por qualquer motivo. Cria-se uma imagem de que as mulheres que defendem a legalização do aborto seriam assassinas, diabólicas”, diz.
Ainda segundo a militante, entre os fundamentalistas religiosos não existe espaço para o debate sobre saúde pública, o foco é o campo da moral que pretende defender a vida mas defende, na realidade, a morte, “porque mata e persegue milhares de mulheres (e demais pessoas com útero) todos os anos”.
Muitos desses grupos fundamentalistas, aponta, se colocarm contra o aborto até mesmo em casos de estupro, anencefalia do feto e em risco para a vida mulher, o que evidenciari a pouca importância dada para a dignidade humana para além do nascimento.
Desde que o mundo é mundo: o aborto no Brasil
A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2021 revela que 1 em cada 7 mulheres brasileiras já passou por um aborto antes dos 40 anos. De forma alarmante, 52% dessas mulheres realizaram a interrupção da gravidez antes dos 19 anos. A disparidade é evidente, pois as mulheres negras enfrentam maior negligência e obstáculos para acessar serviços, representando 47,9% das internações e 45,2% das mortes relacionadas ao aborto.
Ainda no Brasil, uma mulher a cada 28 internações morre no Sistema Único de Saúde, por falha na tentativa de realizar um aborto. Segundo dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS), só entre 2021 e 2022 foram 483 mortes.
“Uma mulher que recorre ao aborto inseguro acaba se sujeitando a muitos riscos, seja com uma clínica clandestina, com medicamentos falsos ou com métodos caseiros perigosos”, comenta a ativista fundadora do Coletivo Várias Marias.
A interrupção da gravidez ser algo legalizado é realidade em muitos países – inclusive acaba de se tornar um direito constitucional na França. Enquanto isso, no Brasil, mulheres tem se organizado em para tentar minimizar os impactos do aborto inseguro e por alternativas seguras para que se faça cumprir o direito das mulheres e pessoas com útero de decidirem sobre o seu próprio corpo.
Segundo Maria Paula, foram as brasileiras que descobriram que o misoprostol, conhecido como Cytotec recomendado para tratar casos de úlcera, era um medicamento abortivo, e assim “passaram a utilizá-lo para abortar de forma mais simples e segura, no final dos anos 1980”.
A alta demanda pelo remédio parece ter chamado a atenção das autoridades, que começaram a cercear a sua comercialização no início dos anos 1990. Oito anos depois, o misoprostol viria a ser permitido somente se administrado dentro dos hospitais, dificultando ainda mais o acesso às mulheres que procuravam um método seguro de interrupção da gravidez. O tema suscitou novas discussões no Congresso Nacional entre os anos de 2005 e 2007, durante os dois governos do presidente Lula (PT).
“Infelizmente, a organização dos deputados anti-aborto foi muito forte, com discursos enérgicos e organização da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e Contra o Aborto, que hoje conta com mais de 200 parlamentares”, relembra a ativista.
Todos os dias, é preciso falar sobre o aborto
Nesse momento acendido pelo voto de Rosa Weber, a principal estratégia dos movimentos feministas para pressionar os demais ministros a acompanharem o voto de Rosa Weber é mobilizar o debate contínuo do tema, levando a pauta para os mais diversos canais de comunicação: nos jornais, nas revistas, nas redes sociais, entre outros.
“É preciso tomar a narrativa como nossa, em defesa do direito à saúde, da liberdade das mulheres e por justiça reprodutiva. Precisamos seguir falando sobre aborto, em todos os lugares que estivermos, para ajudar o tema a deixar de ser um tabu”, diz Maria Paula.
Para ela, ainda é necessário se propor a desmentir boatos e argumentos contrários apresentando dados científicos e fatos que comprovem a necessidade de incluir, de uma vez por todas, o aborto no debate da saúde pública.
Onda verde
Assim como Maria Paula, integrante do coletivo Várias Marias, milhares de feministas e ativistas latinoamericanas tem se pronunciado cada vez mais contra a criminalização do aborto, ocupando as ruas de seus respectivos países em prol dessa luta. A onda verde, como ficou conhecida a luta pela legalização do aborto na Argentina, tomou conta da América Latina e não tem pretensão de parar até que todo o continente faça coro às políticas em defesa ao direito de decisão das mulheres e pessoas que gestam.
Cuba, Guiana, Guiana Francesa e Uruguai eram os únicos países da América Latina que haviam legalizado o aborto até dezembro de 2020. Poucos dias antes daquele ano acabar, a Argentina se juntou ao grupo. No país vizinho, o Senado do país aprovou a sua legalização até a 14ª semana da gestação. Depois de décadas de luta dos movimentos feministas argentinas pela garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, a lei 27.610 deu lugar à antiga lei de 1921, em vigor 101 anos depois de sancionada, e que considerava a interrupção da gravidez um crime, excetuando os casos de estupro ou risco de vida para a pessoa gestante.
A chamada onda verde – manifestações gigantescas pelo aborto legal e seguro – que tomou conta da Argentina em 2020 transformou o país em um símbolo da luta pela descriminalização e legalização do aborto, inspirando demais movimentos feministas na América Latina.
Dois anos depois, em fevereiro de 2022, o avanço veio da Colômbia com a descriminalização do aborto até a 24ª semana de gestação. Após o período, a interrupção só poderá ser realizada em caso de risco de vida da pessoa gestante, em caso de estupro ou malformação do feto.
Outra vitória latinoamericana dessa vez veio do México, que descriminalizou o aborto no dia 6 de setembro deste ano. Foi a Suprema Corte mexicana que tomou essa decisão, após ter autorizado os estados a realizarem abortos no ano anterior, em 2021. No entanto, desta vez, ao declarar inconstitucional a criminalização do aborto, a Corte revogou os artigos do Código Penal que puniam essa prática, garantindo que mulheres e profissionais da saúde não sejam mais sujeitos a prisão por aborto em qualquer parte do país.
Ainda que grande parte da América Latina mantenha a interrupção da gravidez como uma prática proibida, esses países demonstram um caminho viável na batalha pelos direitos reprodutivos das mulheres. E as decisões recentes fornecem um exemplo tangível de como políticas mais inclusivas e progressistas podem ser implementadas para garantir a autonomia e os direitos das mulheres e pessoas com útero sobre suas próprias decisões reprodutivas. São movimentos que tem servido de inspiração e modelo para as políticas brasileiras serem repensadas nesse aspecto.
No caso da Argentina, uma das principais diferenças na mobilização, como pontua Maria Paula, é que lá a pauta é mais englobada pelos movimentos de esquerda e ativistas. Já no Brasil, o tema fica restrito não apenas à ao movimento feminista como à uma parte dele.
“Falta envolvimento de mais pessoas com a pauta falando sobre ela nos espaços, sem tabu, abraçando a causa como prioritária, não deixando em segundo plano, tratando como identitária”, afirma a ativista. Com a reeleição do presidente Lula, há uma janela possível, acredita. Mesmo com os entraves das bancadas evangélicas e mais conservadoras, as ativistas enxergam o potencial de tão logo emplacar a descriminalização no país. Como reforçou a jornalista, os movimentos sociais e parlamentares da base progressista têm o papel fundamental de seguirem pressionando o governo federal e a imprensa para evitar o engavetamento da pauta por mais tempo.
“As mulheres não podem mais esperar. Nunca teremos o momento ideal para tratar de aborto no país. Quem construirá esse momento somos nós mesmas”, finaliza.