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Uma conversa com Marina Silva sobre ativismo, COP e o tempo da urgência

“O tempo da urgência é agora. O lucro de poucos não pode seguir acima da sobrevivência de muitos”

A ministra do meio ambiente Marina Silva

Quantos ativistas e quantos ativismos cabem na vida de uma pessoa? A vida de Marina Silva ecoa essas perguntas de maneira significativa: desde que veio ao mundo, em 1958, num seringal à 70 quilômetros de Rio Branco (AC), Marina foi inúmeras: militante das comunidades eclesiásticas de base (CEB) , fundadora da Central Única dos Trabalhadores, do Partido dos Trabalhadores e da Rede Sustentabilidade, professora,  vereadora, senadora, deputada federal, socioambientalista, candidata à presidência e ícone internacional do ambientalismo, por três vezes ministra.

A trajetória da ministra do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas nos faz nos questionar sobre o que define uma “pessoa ativista”. Que espaços ela pode (ou deve) ocupar? Quais são suas tarefas históricas? Quais os dilemas de alguém que luta? Uma coisa é certa: o ativista é alguém que tensiona o poder, a destruição e a desigualdade em qualquer espaço que ocupe. E esse percurso fala da amplitude do que pode ser ativista. E das armadilhas e potências que cercam essas caminhadas.

Como ministra, em 2003, na primeira vez, participou de um governo que conseguiu derrubar a taxa de desmatamento da Amazônia em 67,6%. Ficou até 2008 no cargo, tendo perdido batalhas contra projetos desenvolvimentistas pretensamente sustentáveis, ou descaradamente insustentáveis, e ganhou outras que seguraram o céu mais um pouco em seu lugar. Não foi suficiente. Não apenas a crise climática se acirrou, como o desmatamento subiu nos últimos quinze anos. Um tanto dessas derrotas podem ser sentidas como derrotas das propostas da ex-ministra.

Marina retorna ao Ministério do Meio Ambiente em 2023, vinte anos depois de sua saída, agora como ministra do meio ambiente e das mudanças climáticas. O compromisso assumido pelo Presidente Lula é de desmatamento zero até o fim do mandato. O desmatamento da Amazônia caiu novamente: 19,5% entre agosto de 2022 e julho de 2023, e mais 46% entre 2023 e 2024. Também caiu no Cerrado e na Mata Atlântica em 2024. Mas o clima não ajuda: 2023 e 2024 são alguns dos anos mais quentes já registrados e o país sufoca em fumaça e fogo. Ou se afoga em chuvas.

Pensando nos caminhos de Marina e nos desafios do presente, nós da Escola de Ativismo chamamos ela para uma conversa. Perguntamos sobre o que é ser ativista e o que ela diria para alguém que está começando agora. Sobre as tensões que se enfrenta ao estar no poder e o que é possível alcançar justamente por estar lá. Sobre promessas e limitações da COP. E sobre a meta necessária do desmatamento zero. 

Escola de Ativismo: Marina, você tem uma longa trajetória política: começou seu ativismo dentro dos movimentos sociais, dos seringueiros e da igreja e sindicatos. Para você, analisando a situação tantos anos depois, quais são os desafios para os ativistas socioambientais na Amazônia hoje? O que você diria para um(a) jovem ativista como você um dia foi e que está fazendo a luta em seu território?

Marina Silva: O contexto mudou bastante, assim, os desafios se transformaram, mas continuam existindo. Hoje os ativistas não estão mais isolados, sem comunicação, no interior da Amazônia. A luta socioambiental que as comunidades tradicionais e os povos indígenas levam em favor das florestas em pé e dos seus direitos são conhecidas, dentro e fora do Brasil. Existe uma maior visibilidade do conjunto das lutas e das ameaças à floresta e ao ativistas. Não dependemos mais apenas do contato direto das lideranças viajando para fora do Brasil para denunciar o que estava acontecendo, como o Chico Mendes precisou fazer em 1987 (no BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento). É possível alertar apoiadores, a opinião pública e as autoridades bem mais rápido do que há 30, 40 anos. Há espaço para repercussão nos meios de comunicação, no Congresso Nacional, no Judiciário. Mas nem por isso os desafios se acabaram. A sociedade brasileira está muito mais polarizada e armada. A violência contra os militantes e ativistas, no campo e na cidade, é letal, com a eliminação – muitas vezes física e muitas vezes moral – dos que contrariam os interesses de alguns poderosos e da criminalidade. Vemos reputações serem destruídas ou abaladas por meio de fake-news. Vemos campanhas de difamação, campanhas de publicidade baseadas em meias verdades que buscam desacreditar causas, vemos batalhas judiciais que exaurem os recursos de tempo e financeiros de indivíduos e de grupos inteiros da sociedade. Hoje como ontem, infelizmente, não basta ter dados, fatos e a justeza das causa – é preciso conseguir fazer com que o público acredite nos dados e fatos apresentados, inclusive em questões tão urgentes e evidentes quanto as mudanças climáticas.

O que eu diria a uma jovem ativista? Parafraseando o poeta espanhol Don Antonio Machado: “caminhante não há caminho – o caminho se faz ao andar”. Conheça o que foi feito antes – até porque o novo não se cria a partir do nada – sem que isso  signifique usar o que foi feito como mera repetição: inove e viva os desafios do teu próprio tempo.

Sua trajetória ativista te levou também para espaços institucionais do poder e da política. Olhando para seu caminho, quais são os dilemas, contradições, possibilidades e potências de estar dentro desses espaços? O que foi possível fazer e o que você sente que deixou de poder fazer ao estar nesses lugares?

Estas perguntas dariam um bom roteiro para uma coleção de livros autobiográficos. Os espaços institucionais permitem antes de tudo dar às nossas experiências a escala necessária para começar a mudar a realidade. Quando estamos na militância, no ativismo, nossa capacidade de pôr em prática as nossas propostas é sempre limitada pelos recursos disponíveis e pelos embates com aqueles que discordam de nossa visão. Nos espaços institucionais, estes limites continuam, mas são ampliados. E como não poderia deixar de ser, as diferenças com aqueles que acreditam em um modelo de desenvolvimento diferente de nossa visão continuam existindo mesmo com aquelas pessoas e instituições que são nossas aliadas. Assim, o poder que temos é sempre relativo e mediado pela realidade política. Conseguir reduzir o desmatamento na Amazônia, na Mata Atlântica e ver isso se desenhando também para o Cerrado, mesmo em um contexto climático adverso; conseguir colocar a questão ambiental, mesmo que em meio a inegáveis contradições, próximo ao centro do debate do modelo de desenvolvimento; aumentar o financiamento para programas de economia sustentável; trazer para o planejamento público federal o método de trabalho em programas transversais, compartilhados entre vários ministérios e com a sociedade; esse são alguns dos feitos para os quais sinto que estar dentro dos espaços institucionais de forma comprometida é sem dúvidas uma relevante contribuição.

O Brasil é o país mais afetado na América Latina por deslocamentos climáticos. A tragédia no Rio Grande do Sul, as enchentes e secas históricas na Amazônica, os incêndios e as nuvens de fumaça cobrindo o país, além de diversos outros eventos extremos evidenciam a urgência da nossa situação. Ao mesmo tempo, temos um congresso reativo à pauta ambiental e passamos, nas suas palavras, por um apagão de cinco anos na política ambiental. Alertas foram ignorados e os efeitos são sentidos. O tempo para ação é curto e o prognóstico terrível. É possível pensar ainda na política de desmatamento zero prometida no começo do mandato? O que ainda falta para ser feito? Nesse cenário, como ter esperança? Quais as perspectivas para o futuro da luta climática? 

A política de desmatamento zero é antes de tudo necessária. Precisamos, inclusive, reflorestar, recompor e recuperar as funções ecológicas de nossas florestas e espaços de vegetação nativa. E, mesmo com a resistência de parte significativa do setor privado a quaisquer limites na sua capacidade de decidir o que fazer em suas propriedades ou com seus investimentos, é uma questão de bom senso saber que a mudança no clima imporá limites muito mais estreitos do que qualquer política pública poderia definir. Isso acontecerá em pouquíssimo tempo e os dados científicos e os eventos extremos estão aqui para prová-lo. 

Quanto a termos esperança, sempre digo que ela é fundamental para seguirmos em frente, mas ela não pode vir de uma crença ingênua no futuro, ela deve vir da decisão de colocar em jogo nossa capacidade de acreditar criando. A sociedade brasileira mostra que entende a urgência do clima e a necessidade de mudar nosso modelo de produção e consumo. No entanto, precisamos romper a inércia dos resultados já alcançados, posto que ainda são claramente insuficientes. O tempo da urgência é agora e não pode estar submetido aos tempos da política, das eleições a cada 2 anos e das lutas pela manutenção de privilégios de poucos frente a necessidade de sobrevivência de muitos. Os mais vulneráveis economicamente são também os mais vulneráveis aos eventos extremos, mas eventualmente todos os seres humanos serão impactados.

A COP30, que acontecerá no ano que vem em Belém, deve ser uma oportunidade para o Brasil liderar pelo exemplo, sobretudo com NDCs robustas e alinhadas com a missão 1,5O, fazendo o enfrentamento das mudanças climáticas, aliando tecnologia e conhecimentos tradicionais para implantar soluções apropriadas, justas e prenhes de equidade.

As últimas COPs foram muito criticadas pela falta de voz, protesto e espaço para ativistas e defensores ambientais. Que garantias o governo federal pode dar de que em Belém será diferente? Os coletivos, organizações e especialistas climáticas terão sua voz respeitada no Brasil?

É do conhecimento de todos que as COPs se instituem dentro da logística dos processos multilaterais liderados pelas Nações, como a meu ver precisam ser, a fim de que todos os países possam ter a chance de fazer parte das decisões. O país que a sedia não tem o controle sobre sua governança de funcionamento e negociação. Isso é de domínio das Nações Unidas. O fato de ser sediada em um país diverso como o Brasil, que a duras penas consegui manter sua democracia, exige uma maior conectividade entre o multilateralismo formal e o multiculturalismo social. Ou seja, maior conectividade entre a zona verde da sociedade civil que lidera pelo exemplo, pressiona, constrange e exige, e a zona azul, dos representantes formais dos Estados, que em última instância são quem negociam e decidem. É esta conectividade que permitirá de que se decida levando em conta o necessário sentido de urgência de um planeta em inegável estado de emergência.

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