Dias antes, exatamente em 31 de julho, o então secretário de redação do jornal Folha de São Paulo, Roberto Dias, publicou uma opinião no referido jornal, intitulada As lutas nos jogos. Nesta, expõe sua aversão à prática do boxe, sugerindo, inclusive, seu banimento dos Jogos Olímpicos. Os argumentos apontados pelo autor não apresentam nenhuma novidade, sendo uma atualização de ideias difundidas há mais de cem anos no Brasil: o boxe é reduzido à agressão mútua, comparado de forma pejorativa a uma briga de galos e, portanto, deveria ser proibido. Para este, há de chegar o dia em que o boxe sairá do programa olímpico “pelos motivos certos”, ou seja, por não merecer ser considerado um esporte.
Narrativas de marginalização, repressão e perseguição policial, assim como aconteceu no passado com outras manifestações culturais afrodescendentes, como o samba e a capoeira – ou atualmente com o funk – foram constantes durante todo o século 20. O fato elementar e primordial a se considerar é que, no Brasil, historicamente, o boxe é um esporte praticado por gente pobre e preta – vide a composição da atual seleção olímpica, formada quase que integralmente por pessoas não brancas. As escolas e projetos sociais que iniciam e formam atletas competidores estão majoritariamente localizados em favelas, quebradas e bairros populares. É um saber desenvolvido nas periferias dos grandes centros urbanos, com protagonismo dos moradores, treinadores e atletas desses espaços. “O boxe é uma pedagogia da favela, playboy não luta boxe”, contou-me Raff Giglio, renomado treinador carioca.
O caráter gratuito e beneficente, o discurso político de que a formação cidadã é prioritária sobre a formação competitiva, assim como a aglutinação de outras atividades culturais no mesmo espaço, acabam por reforçar a propriedade de projeto social das academias de boxe olímpico. Assim, são crianças e jovens os principais atendidos por estas instituições. Ou seja, parte dos processos de socialização juvenil, assim como os ritos de iniciação à vida adulta, acontecem coetaneamente à iniciação e formação enquanto atletas competidores. Assim, a noção de que o boxe é um bem social tem sido fundamental para sua aceitação e inserção popular. Nesses territórios, o corpo esportivizado é, muitas vezes, salvo conduto, motivo de orgulho, dignidade e pertencimento frente às poucas perspectivas de renda da população jovem, à ineficácia de amparo do Estado e à violência policial cotidiana.
A cisão irrecuperável entre formas da sensibilidade (2) que marca a distância entre o feito de Hebert Conceição – nascido, criado e iniciado no boxe em um bairro da periferia de Salvador – e o texto de Roberto Dias é uma poderosa imagem para se pensar o confronto de raça e classe que estrutura a formação social do Brasil. Em um esforço de síntese, podemos dizer que Roberto Dias apresenta, em seus argumentos, o medo das elites através da hierarquização e desumanização de um saber racializado, ou seja, representa o modo de pensar e agir da branquitude; traduz a centralidade da violência antinegra em forma de opinião. Assim, é possível pensar a medalha de Hebert Conceição, sua comemoração eufórica ao som do nobre guerreiro negro lutador, seu grito de desabafo, como uma forma de revide contra as instituições e pessoas que militam contra o boxe. Sua vitória não foi comemorada pelo secretário de redação porque é a vitória de um Brasil específico. O Brasil do Quilombo dos Palmares.