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O que movimentos sociais ocuparem as eleições pode significar para a democracia e a esquerda brasileira?

O MST elegeu 177 vereadores, prefeitos e vice-prefeitos em 2024; Tereza Mansi analisa esse momento como um espaço de projeção, transição e renovação
Movimentos sociais ocupam a institucionalidade por meio das eleições

Por Tereza Mansi

As eleições municipais brasileiras se tornaram um terreno estratégico onde forças progressistas e a crescente extrema-direita se enfrentam intensamente. Nesse cenário, as candidaturas oriundas de movimentos sociais desempenham um papel muito importante, pois desafiam a hegemonia de grupos políticos tradicionais e inserem na pauta eleitoral as demandas da população mais vulnerável. Esses movimentos, formados por trabalhadores rurais, comunidades periféricas e organizações da sociedade civil, têm sido a linha de frente na resistência democrática, em um contexto político marcado pela polarização e desigualdade.

O Brasil, assim como outras democracias, testemunha  o avanço de lideranças autoritárias e populistas, com discursos que minam a democracia, criminalizam os movimentos sociais, fomentam o ódio e excluem socialmente grupos historicamente marginalizados. Em oposição a esse fenômeno, lideranças provenientes desses movimentos criminalizados pela extrema-direita, têm trazido às eleições locais uma resposta firme, baseada em justiça social, defesa dos direitos humanos, combate às desigualdades e promoção da participação popular.

Essas candidaturas oferecem uma oportunidade única de renovação para as forças progressistas, sobretudo a esquerda, que, após anos de estagnação, encontra nelas um caminho promissor para rejuvenescer suas lideranças e se rearticular politicamente. Enquanto a direita se renova rapidamente, apresentando novas figuras, como influenciadores digitais ou personagens que se beneficiam de discursos populistas simplificados, a esquerda tem, em grande parte, recorrido aos mesmos nomes que há décadas a representam.

A recente eleição de Lula, por exemplo, foi fundamental para frear o avanço da extrema-direita, mas evidenciou a dificuldade da esquerda em promover uma renovação de suas lideranças. Nesse contexto, as candidaturas vindas dos movimentos sociais emergem como uma força transformadora, trazendo uma esperança renovada para a esquerda brasileira.

Candidaturas Coletivas e a Superação do Individualismo

A inserção dos movimentos de base nas disputas eleitorais não é um fenômeno novo, mas tem ganhado relevância e organização nos últimos anos, particularmente após os retrocessos políticos iniciados com o golpe de 2016. O apoio à candidaturas de lideranças comunitárias e ativistas ligados a movimentos sociais se intensificou diante da necessidade urgente de impedir o avanço da extrema-direita e suas agendas excludentes. Movimentos como os de trabalhadores rurais, feministas, indígenas, quilombolas e da juventude passaram a articular suas próprias lideranças e a construir projetos políticos que transcendem os interesses particulares e se voltam às demandas coletivas das suas bases.

Diferentemente dos mandatos coletivos, que surgiram nos últimos anos e enfrentam desafios impostos pelo modelo jurídico e político vigente no Brasil, as candidaturas oriundas de movimentos sociais têm se consolidado como alternativas mais estruturadas. Enquanto os mandatos coletivos buscam romper a lógica institucional que privilegia o protagonismo individual e a personalização das lideranças, enfrentam barreiras significativas, como a ausência de regulamentação específica e a centralização do poder de voz e voto no titular, o que frequentemente limita a plena expressão da coletividade eleita para o exercício do cargo. Em contraste, as candidaturas ligadas a movimentos sociais, que também resultam de processos democráticos e organizados, como as coletivas,  acabam sendo favorecidas pela própria estrutura institucional, conferindo-lhes maior estabilidade.

Isso significa que, mesmo concorrendo com um nome individual, as  candidaturas vindas dos movimentos sociais, também representam as demandas, aspirações e projetos de grupos inteiros que compartilham uma história comum de organização e luta. Não são apenas figuras isoladas no palco político, mas porta-vozes de movimentos que, historicamente, têm sido a linha de frente na defesa dos direitos humanos e da justiça social no Brasil. E essa dimensão coletiva não é um mero detalhe: ela molda a forma como esses candidatos e candidatas entendem a política e suas responsabilidades enquanto representantes do movimento.

A Transição dos Movimentos para o Espaço Eleitoral

A candidatura de lideranças vindas diretamente dos movimentos sociais – especialmente em tempos de polarização e desinformação – os obriga a irem além das suas próprias organizações, buscando construir laços em comunidades, periferias, sindicatos,  para se conectarem diretamente à população.

Esses espaços, antes dominados por partidos e organizações tradicionais, agora se veem ocupados por iniciativas comunitárias que englobam desde as cozinhas solidárias (onde se distribui comida e se constroem laços de afeto), os debates políticos e até os cineclubes. Essas ações não são isoladas, mas parte de um esforço coordenado para escutar as queixas, demandas e dilemas da população, criando um retrato autêntico da realidade local, ao mesmo tempo em que oferecem momentos de lazer e atendem necessidades urgentes.

Esse trabalho de base tem sido feito em todos os cantos do Brasil, impulsionado por movimentos como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que sozinho lançou mais de 700 candidaturas nas eleições municipais, espalhadas em 12 partidos, elegendo 133 vereadores no país. Trata-se, portanto, de um movimento massivo de inserção política que transcende o campo partidário, buscando construir um projeto que reflita a diversidade e a complexidade da sociedade brasileira. Cada candidato ou candidata, ao participar dessas campanhas, tem a oportunidade de aprender diretamente com a população, compreendendo suas necessidades e formando uma visão mais ampla e conectada com as realidades locais.

Oportunidade de Mistura e de Aprendizado Político

Além de fortalecer os laços com a base, as candidaturas oriundas dos movimentos sociais, especialmente do MST,  permitem uma mistura de pautas e lutas. As lideranças que emergem desses movimentos estão em contato direto com ativistas que debatem questões culturais, de saúde, infância, direitos indígenas e LGBTQIA+, ao mesmo tempo em que se engajam nas lutas mais tradicionais do campo progressista, como a reforma agrária, a agroecologia, o combate aos agrotóxicos e a promoção da agricultura familiar. Essa diversidade de pautas faz com que cada campanha seja uma verdadeira escola política, na qual candidatos e candidatas saem com uma formação sólida, prontos para o enfrentamento das questões estruturais que atravessam o Brasil contemporâneo.

É importante destacar que, independentemente dos resultados das urnas, cada um desses candidatos saiu vitorioso de alguma forma. As campanhas servem como processos intensivos de formação política, onde as lideranças ganham experiência no combate à desinformação, na articulação de políticas públicas e no enfrentamento direto à extrema-direita. A jornada eleitoral, portanto, não é apenas sobre conquistar cargos, mas sobre preparar novos quadros mais capacitados para defender a democracia e promover as transformações sociais que o Brasil tanto necessita.

Este momento eleitoral, portanto, como já dito, vai além de uma simples disputa por cargos políticos. Ele é, na verdade, uma transição que projeta novos nomes e novas lideranças, criando a possibilidade de uma renovação há muito tempo necessária dentro da esquerda brasileira. 

Assim, as candidaturas que emergem dos movimentos sociais trazem uma nova energia e perspectivas para o campo progressista. Elas são o resultado de um esforço coletivo, não apenas de resistir ao avanço da extrema-direita, mas também de propor um futuro em que a política seja construída de baixo para cima, com base nas necessidades reais do povo.

Os movimentos sociais, em especial o MST, têm vivenciado uma renovação em suas dinâmicas internas ao elegerem suas lideranças para disputar cargos eletivos, assumindo um protagonismo na formação política de base que antes era domínio quase exclusivo dos partidos. Essa nova configuração política fortalece a esquerda, que se torna mais conectada às lutas populares, ganhando não apenas representatividade, mas também maior capacidade de enfrentar os desafios impostos pela extrema direita e pelo neoliberalismo. Com isso, os movimentos se posicionam como forças essenciais para a construção de uma alternativa política genuinamente enraizada nas demandas do povo.

Tereza Mansi é advogada e ativista pelos direitos humanos. Faz parte do Coletivo de Direitos Humanos do MST em Pernambuco, é Membra da Executiva da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia) e membra da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PE.

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