Esses princípios são muito bonitos escritos no papel, mas não podem ser mantidos apenas na teoria: eles precisam ganhar vida em iniciativas de energia popular, que coloque as comunidades no centro do processo de geração, distribuição e consumo de energia. A energia popular é caracterizada pela gestão descentralizada, participação direta das populações locais nas decisões e o objetivo de atender prioritariamente às necessidades sociais, em vez de maximizar lucros corporativos. E já existem exemplos de energia popular sendo implementadas no Brasil e no mundo.
No Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro, a ONG Revolusolar apoiou na criação da Cooperativa Percília e Lúcio de Energias Renováveis de energia solar local em 2021, a 1ª em uma favela do Brasil. O processo, batizado pela organização de “energia solar social”, já se repetiu em outras seis localidades do Brasil, e consiste em organizar parcerias para que os próprios moradores da comunidade sejam capacitados como instaladores de energia solar, decidam sobre o local a ser instalado e realizem a instalação.
“É preciso uma atuação coletiva clara para que os benefícios de uma transição energética cheguem a quem mais precisa.”, disse Eduardo Ávila, fundador e diretor-executivo da Revolusolar, em entrevista para a Folha de São Paulo em outubro de 2024.
No Vale do Jequitinhonha, em 2018, surgiu o projeto Veredas Sol e Lares, proposto pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). O projeto nasceu em um contexto de intensos conflitos fundiários na região, agravados pela exploração de eucalipto, lítio e pelo impacto histórico de barragens – estas que surgiram ali com o objetivo de gerar energia por meio de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs). Na época, as PCHs estavam operando com baixíssima capacidade, e apenas os seus impactos negativos eram sentidos pela população local. Foi então que a comunidade pensou em outros usos para aquelas barragens – e por que não uma usina solar sobre as águas do lago artificial?
Uma usina dessas proporções certamente exigiu grandes articulações e teve grandes impactos, mas, diferente dos exemplos trazidos no início, dessa vez eles foram apenas positivos. Desde o início, as comunidades locais foram envolvidas em todas as etapas, com a criação da Associação dos Consumidores de Geração Distribuída de Minas Gerais. Essa associação, considerada a maior de Geração Distribuída (GD) na América Latina, garante que o controle da energia permaneça nas mãos do povo. Foram envolvidas aproximadamente seis mil pessoas, em mais de 400 atividades de campo, nos 21 municípios que fazem parte da abrangência da usina.
“Não adiantava pensar em uma geração de energia solar em que o povo não fosse protagonista. Não trata-se de chegar e dar para o povo, é chegar e construir com ele”, trouxe Aline Ruas, uma das coordenadoras do MAB em Minas Gerais, em reportagem publicada na Escola de Ativismo.
Veredas Sol e Lares é um exemplo vivo de que uma articulação de movimentos populares com o poder público e a academia pode abrir caminhos para uma transição energética que desafia o modelo centralizador e predatório atual. Em vez de violar territórios e desconsiderar (ou até expulsar) as populações locais, a energia popular coloca o povo e o meio ambiente na base do debate. Outra lógica de energia é possível, mas não sem uma modificação radical em toda a estrutura que hoje rege os grandes projetos de energia.
O Brasil precisa parar de apresentar o seu setor energético cheio de maquiagem verde como cartão de visitas em todas as conferências internacionais, como tem feito nas últimas COPs e reuniões do G20, arregaçar as mangas e, de fato, construir exemplos de energia popular em larga escala para que – isso sim – possa servir de exemplo para o restante do mundo.