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O que é democracia energética e como ela contrapõe o falso modelo verde brasileiro

No Brasil, a transição energética tem sido conduzida sob uma lógica centralizadora e focada no mercado, perpetuando os padrões exploratórios e as injustiças observadas em projetos baseados em combustíveis fósseis. Aqui, Bruno Berilli se debruça sobre alternativas à esse modelo.

democracia energética transição

Foto: Luara Dal Chiavon

Ao pensar na geração de energia elétrica, qual é a primeira coisa que vem à sua mente? Para moradores do baixo São Francisco, na divisa da Bahia com Pernambuco, provavelmente vem a palavra “destruição”. Isso porque um programa de desenvolvimento do governo brasileiro escolheu essa região para a construção de uma usina hidrelétrica em 1979. Nove  anos depois, a usina de Itaparica entrou em funcionamento, mas não antes de alagar uma região habitada por milhares de famílias, forçando a retirada abrupta, sem nem mesmo o oferecimento de um abrigo temporário.

Em uma entrevista concedida ao Ministério Público em 2013, um dos afetados relatou o tamanho do problema: “Tem noite que eu não consigo dormir pensando no que era meu e que eu perdi. (…) o que eu fiquei agora só com uma aposentadoriazinha pra eu não morrer de fome.” disse Euclide José da Silva, agricultor e antigo morador da região . Em 2013, O MPF foi até a região para atender uma denúncia de que a Chesf, empresa responsável pelo empreendimento, não tinha cumprido com as promessas feitas 25 anos antes e deixou centenas de pessoas sem nenhum tipo de indenização após terem perdido tudo que tinham para a construção da barragem.

Algumas pessoas podem pensar que isso ocorreu porque a usina de Itaparica é fruto de um período de ditadura e violência política no Brasil, mas então o que explicaria Belo Monte? Uma obra de enormes proporções, tão — senão mais — violenta com a população local e a biodiversidade do Rio Xingu quando comparada com a usina de Itaparica. Idealizada, projetada e inaugurada durante governos democraticamente eleitos, entre 1989 e 2016. 

Em 2022, o STF reconheceu que o direito de consulta prévia dos povos indígenas afetados por Belo Monte foi violado, mas isso pouco significou uma vez que a obra foi concluída e a região já havia sido drasticamente alterada, com impactos irreversíveis para as comunidades locais e para o ecossistema do Xingu. As promessas de desenvolvimento econômico e geração de empregos ficaram distantes da realidade, substituídas pela destruição de modos de vida tradicionais, desmatamento, e pela falta de compensação adequada aos atingidos.

O problema seria então apenas as hidrelétricas? O caso do Parque Eólico Ventos de São Clemente mostra que não. Em 2016, o empreendimento com 126 aerogeradores entrou em funcionamento em Caetés (PE), e a população local, aos poucos, foi percebendo que toda a propaganda positiva sobre o Parque era uma grande mentira. Os moradores descrevem o som dos aerogeradores como “um avião que nunca pousa”, e a intensa poluição sonora impacta diretamente suas rotinas, sua saúde (física e mental) e toda a biodiversidade local — problema excepcionalmente descrito no documentário A Armadilha da Energia Eólica, lançado em 2021 pela Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco – Fetape.

A agricultora Maria Neuma da Silva mostra remédios ansiolíticos e antidepressivos que usa com frequência após sofrer com problemas de saúde mental causados pelos aerogeradores. l Foto: Vinícius Sobreira/Brasil de Fato

No documentário, o agricultor Simão Salgado fala do impacto após a instalação dos aerogeradores: “A gente teve impacto na criação dos animais, as vacas diminuíram a produção do leite em torno de 18 a 20%, a gente teve perda na produção de ovos, (…) e uma grande perda que eu também considerei foi nas abelhas, a minha propriedade tinha muita abelha nativa e eu notei que a abelha desapareceu com o ruído e com o vento.”, lamenta. 

Além disso, a promessa de desenvolvimento econômico local também não se concretizou. A renda da energia gerada segue destinada principalmente para grandes empresas de energia, sem beneficiar as comunidades que agora convivem com os efeitos devastadores da instalação.

Esses três exemplos ilustram uma verdade inconveniente para o tão “verde” setor energético brasileiro: os projetos de energias renováveis têm sido conduzidos sob uma lógica centralizadora e mercadológica e reproduzem os mesmos padrões de exploração e injustiça que caracterizaram os empreendimentos baseados em combustíveis fósseis. O problema, então, não é a fonte de energia em si, mas o modelo de desenvolvimento predatório que guia esses projetos há quase um século, ignorando os direitos das populações afetadas e os impactos ambientais de médio e longo prazo.

O aumento populacional ligado ao aumento da renda per capita, no entanto, exige que cada vez mais energia seja gerada para atender à demanda crescente. Mas como fazê-lo sem perpetuar as violências tão enraizadas no setor? A resposta pode estar em um conceito ainda pouco conhecido: a democracia energética, que propõe que a energia deve ser tratada como um bem público e um direito universal, ao invés de uma mercadoria sujeita às dinâmicas de mercado. Isso significa que a transição energética não pode ocorrer “de cima para baixo”, mas precisa ser construída de forma participativa, onde as populações locais tenham voz ativa nas decisões que moldam seus territórios. 

Este conceito surgiu em 2012 nos Estados Unidos, onde a Trade Unions for Energy Democracy (Da sigla em inglês TUED, que significa Sindicatos pela Democracia Energética), foi criada durante um evento sobre o setor energético global. Nesse encontro, foi reconhecido que o modelo atual de geração de energia, baseado no uso descontrolado de combustíveis fósseis, é insustentável e está levando a uma crise climática global. Ao mesmo tempo, o aumento da influência política das indústrias fósseis e as abordagens baseadas no mercado falham em atender às necessidades das comunidades e do meio ambiente, comprometendo uma transição energética justa. O interessante desse encontro é que eles saíram com um documento que orienta o caminho da Democracia Energética, o relatório Resist, Reclaim, Restructure (Resistir, Recuperar e Reestruturar), que sugere três passos para uma reestruturação geral do setor energético global:

TEXTO

Bruno Berilli

Defensor ambiental e climático, pesquisador das relações entre Energia e Mudanças Climáticas e bacharel em Energia e Sustentabilidade pela UFRB, onde também cursa Engenharia de Energias. Atua na articulação de projetos que unem juventude, justiça climática, comunicação estratégica e formação para a incidência política.

publicado em

TEMAS

princípios da democracia energética

    1. Resistir: Combater as agendas das corporações de combustíveis fósseis que, por meio de seu poder econômico e político, continuam a promover a exploração intensiva de recursos e a bloquear políticas efetivas de proteção climática. 
    2.  
    3. Recuperar: Reivindicar o controle público de setores privatizados ou mercantilizados da economia energética. As privatizações, frequentemente promovidas como “formas de melhorar eficiência e acesso”, geralmente levam a aumento na tarifa de energia, menor qualidade dos serviços e exclusão de comunidades vulneráveis.
    4.  

    Reestruturar: Transformar radicalmente o sistema energético global. Isso significa expandir o uso de fontes renováveis enquanto são implementadas estratégias de eficiência energética e para acabar com a pobreza energética, que ainda afeta bilhões de pessoas no mundo. A reestruturação exige um controle democrático e descentralizado, onde trabalhadores, comunidades e governos locais possam se moldar e se beneficiar diretamente do novo sistema energético.

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Esses princípios são muito bonitos escritos no papel, mas não podem ser mantidos apenas na teoria: eles precisam ganhar vida em iniciativas de energia popular, que coloque as comunidades no centro do processo de geração, distribuição e consumo de energia. A energia popular é caracterizada pela gestão descentralizada, participação direta das populações locais nas decisões e o objetivo de atender prioritariamente às necessidades sociais, em vez de maximizar lucros corporativos. E já existem exemplos de energia popular sendo implementadas no Brasil e no mundo. 

 

No Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro, a ONG Revolusolar apoiou na criação da Cooperativa Percília e Lúcio de Energias Renováveis de energia solar local em 2021, a 1ª em uma favela do Brasil. O processo, batizado pela organização de “energia solar social”, já se repetiu em outras seis localidades do Brasil, e consiste em organizar parcerias para que os próprios moradores da comunidade sejam capacitados como instaladores de energia solar, decidam sobre o local a ser instalado e realizem a  instalação.

“É preciso uma atuação coletiva clara para que os benefícios de uma transição energética cheguem a quem mais precisa.”, disse Eduardo Ávila, fundador e diretor-executivo da Revolusolar, em entrevista para a Folha de São Paulo em outubro de 2024.

No Vale do Jequitinhonha, em 2018, surgiu o projeto Veredas Sol e Lares, proposto pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). O projeto nasceu em um contexto de intensos conflitos fundiários na região, agravados pela exploração de eucalipto, lítio e pelo impacto histórico de barragens – estas que surgiram ali com o objetivo de gerar energia por meio de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs). Na época, as PCHs estavam operando com baixíssima capacidade, e apenas os seus impactos negativos eram sentidos pela população local. Foi então que a comunidade pensou em outros usos para aquelas barragens – e por que não uma usina solar sobre as águas do lago artificial?

Uma usina dessas proporções certamente exigiu grandes articulações e teve grandes impactos, mas, diferente dos exemplos trazidos no início, dessa vez eles foram apenas positivos. Desde o início, as comunidades locais foram envolvidas em todas as etapas, com a criação da Associação dos Consumidores de Geração Distribuída de Minas Gerais. Essa associação, considerada a maior de Geração Distribuída (GD) na América Latina, garante que o controle da energia permaneça nas mãos do povo. Foram envolvidas aproximadamente seis mil pessoas, em mais de 400 atividades de campo, nos 21 municípios que fazem parte da abrangência da usina.

“Não adiantava pensar em uma geração de energia solar em que o povo não fosse protagonista. Não trata-se de chegar e dar para o povo, é chegar e construir com ele”, trouxe Aline Ruas, uma das coordenadoras do MAB em Minas Gerais, em reportagem publicada na Escola de Ativismo.

Veredas Sol e Lares é um exemplo vivo de que uma articulação de movimentos populares com o poder público e a academia pode abrir caminhos para uma transição energética que desafia o modelo centralizador e predatório atual. Em vez de violar territórios e desconsiderar (ou até expulsar) as populações locais, a energia popular coloca o povo e o meio ambiente na base do debate. Outra lógica de energia é possível, mas não sem uma modificação radical em toda a estrutura que hoje rege os grandes projetos de energia. 

O Brasil precisa parar de apresentar o seu setor energético cheio de maquiagem verde como cartão de visitas em todas as conferências internacionais, como tem feito nas últimas COPs e reuniões do G20, arregaçar as mangas e, de fato, construir exemplos de energia popular em larga escala para que – isso sim – possa servir de exemplo para o restante do mundo.

Glossário: alguns termos importantes do setor energético

Usina solar fotovoltaica construída sobre o lago da PCH Santa Marta, que operava com baixa capacidade, e começou a gerar energia em 2023.Foto: Divulgação Veredas Sol e Lares

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    Energia Renovável

     

    Fontes de energia que se regeneram naturalmente, como solar, eólica, hidráulica e biomassa.

     

    Energia Limpa

     

    Fontes de energia que geram baixa ou nenhuma emissão de gases de efeito estufa, além de um baixo impacto no ecossistema de instalação. Podemos dizer, então, que a energia hidráulica é renovável, mas não é limpa.

     

    Transição Energética

     

    Processo de substituição de fontes fósseis por fontes renováveis para reduzir as emissões de carbono do setor energético – setor que mais emite gases que causam o efeito estufa no planeta.

     

    Transição Energética Justa

     

    Agenda que busca garantir que a transição energética não deixe ninguém para trás, buscando principalmente que a transição energética seja financiada pelos países e empresas que mais lucraram com “energias sujas”.

     

    Democracia Energética

    Modelo que propõe descentralizar a produção e o controle da energia, fazendo com que a energia seja tratada como um bem público e um direito universal, ao invés de uma mercadoria sujeita às dinâmicas de mercado.

    Pobreza Energética

     

    Falta de acesso a serviços de energia essenciais ou a uma energia de qualidade a um preço acessível. Vale lembrar que energia pode ser tanto elétrica quanto térmica – para a cocção de alimentos, por exemplo.

     

    Geração Distribuída (GD)

    Modelo de produção de energia elétrica em que os consumidores são responsáveis por gerar a própria eletricidade. É o oposto da Geração Centralizada (GC).

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