Por Mario Campagnani – 11/08/2023

Seminário nacional realizado em Recife contou com lançamento da publicação “A experiência da advocacia popular no exercício do direito ao protesto”

Foto: Elaine Guimarães

Nas democracias, o direito ao protesto tem uma função basilar. Não apenas por estar entre as garantias fundamentais, mas também porque é por meio dele que se obtém a manutenção de todos os outros. Quando há o desejo autoritário de calar as vozes, é sobre ele que os primeiros golpes se concentram. Não sem motivo, a garantia de exprimir nossas opiniões e lutar pelos direitos são alvo de duplos ataques. Se por um lado o fascismo e a repressão buscam cercear aqueles e aquelas que lutam por garantias e avanços, por outro há o risco desse mesmo direito ser colocado como uma marionete, um fantoche útil para esconder desejos totalitários, sob a máscara da liberdade de expressão.

A diferença entre o direito de protestar e os ataques à democracia, porém, não é difícil de ser desenhada, como mostraram as falas dos participantes do Seminário “Direito ao Protesto como Exercício da Democracia: Das Jornadas de 2013 aos Desafios Atuais”, realizado nos dias 9 e 10 de agosto em Recife (PE). O evento também foi o lançamento da publicação “A experiência da Advocacia Popular no Exercício do Direito ao Protesto”. 

Em 2013, os tiros e bombas da polícia caíam do lado de fora da sala de aula enquanto a então estudante de Direito Sheila de Carvalho – hoje assessora especial do Ministério da Justiça e presidente do Conare – fazia suas últimas provas, antes de se formar. Então na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo, Sheila lembra das detenções arbitrárias e até onde a repressão consegue chegar no Brasil:

Isso dialoga com o Brasil, com a forma como foi construído o direito a protestos. Somos um país que ainda tem uma ditadura militar que está debaixo do tapete. Não tivemos uma transição que permitiu que o que passou na ditadura fosse sanado”, afirma Sheila que também refletiu sobre como isso reverbera quando se chega a 8 de janeiro deste ano, quando a tentativa de golpe tem novamente por trás o militarismo.

“Aquilo não pode ser considerado um direito ao protesto. Não há como garantir um direito se a tentativa é usá-lo para derrubar um estado democrático de direito”, ressalta Sheila, lembrando como pedidos de golpe foram tolerados e incentivados pelo antigo governo federal.

Para o advogado Rodrigo Mondego, que atuava nas ruas do Rio de Janeiro durante 2013, a seletividade de quem tem direito ou não de protestar aparece não apenas quando se fala de campo progressista ou conservador, mas muito mais quando se fala de raça e classe. Atuando com familiares de vítimas da violência do Estado, ele conta sobre como o Sistema de Justiça atua quando se trata de jovens negros. Um dos casos emblemáticos disso foi o de Rafael Braga, preso no contexto das manifestações acusado de porte de produto inflamável, no caso, um Pinho Sol.

Clique na imagem acima para ler a publicação. 

Mondego lembra que a chegada desse perfil – jovem negro pobre – na delegacia leva quase que automaticamente a uma entrada no sistema e impactos difíceis de serem sanados. Por isso, ele destaca a importância de advogados e advogadas que acompanham protestos estarem presentes no momento da prisão e da chegada na delegacia, de forma a mitigar os impactos.

“Quem faz defesa do direito a protesto tem que estar in loco, pois isso faz diferença. Para termos uma análise correta da investigação, que seja feita bem desde o início, porque a perícia do local não funciona corretamente, testemunhas vão sumir por medo”, diz Mondego, acrescentando que as conversas com delegados muitas vezes modificam até mesmo o tipo de acusação que vai ser feita aos manifestantes.

 

“Fechando as ruas para abrir os caminhos”

 

Na segunda mesa do dia 9, “Das Jornadas de 2013 aos desafios atuais”, a conversa sobre o relevância, mas também os privilégios do ativismo foram colocadas em destaque. Paique Santarém, do Movimento Passe Livre, relembrou o histórico de revoltas populares que tiveram no transporte o seu estopim, como a Revolta do Vintém, que em 1880 levou a população do Rio de Janeiro, então capital do país, a um protesto contra a cobrança nos bondes. Para Paique, pensar sobre transporte é também pensar a questão racial brasileira, com a lógica da (i)mobilidade urbana retroalimentando o racismo. Porém, ressalta ele, é necessário não deixar de dar o destaque ao tema principal desses atos:

“Essas revoltas são lidas para entender outras coisas, como se não fosse o transporte o motivo. A formulação de que junho seria para destruir a democracia. Um esforço hercúleo para falar que essas manifestações não são sobre o que elas declaram que são. Esse delírio acontece porque não se chegou a um debate sério sobre o que seria a questão do transporte no Brasil, de como as cidades foram construídas como um muro social”, explicou Santarém.

Esse muro social que aparece não apenas na mobilidade, mas também na própria forma de fazer ativismo no Brasil. Partindo do exemplo de 2013, Ingrid Farias, coordenadora de formação do Instituto Update, lembrou como aquele ano serviu também para esgarçar uma série de contradições presentes nos próprios movimentos sociais, com debates sobre privilégios, assim como opressões como misoginia e LGBTQIAP+fobia.

“Só faz ativismo hoje quem tem muito privilégio. O direito de reivindicar deveria ser de todo mundo, mas depois de pegar dois ônibus para ir trabalhar, dois para voltar, pegar o menino na casa da mãe, quem ainda tem tempo?”, questiona Ingrid, destacando a necessidade de o campo progressista estar atento e atuante para lidar com essas questões.

Os ataques por meio do Legislativo e do Judiciário

 

Carla Varea Guareschi iniciou o segundo dia do Seminário tratando das repercussões políticas e legislativas da criação da lei 13.260 de 2016, a chamada Lei Antiterrorismo. Destacando que a lógica de repressão aos movimentos sociais não é nova, Guareschi mostrou como essa lei, aprovada dentro do contexto de realização das Olimpíadas do Rio, abriu a porta para que a o tema da criminalização dos movimentos fosse abordada no Legislativo.

“O uso dessa terminologia de terrorismo contra movimentos sociais não é algo só do Brasil, mas da América Latina e do mundo. Então não há dúvida nenhuma de que essa preocupação com essa lei se sustenta, de que ela abriu uma janela para um recrudescimento dessa perseguição”, afirma a pesquisadora.

De 2016 a 2018, foram apresentadas 7 propostas para modificar a lei, aumentando sua capacidade repressiva. Com a chegada de Bolsonaro ao poder e o crescimento da extrema direita, foram 13 projetos de 2019 a 2021. Apenas 20% das proposições mencionam exemplos de atentados terroristas internacionais na justificativa, o que indica uma aparente desconexão entre um suposto debate hegemônico global e o debate no Brasil.

“O que mobiliza a pauta são os movimentos sociais, que centralizam e norteiam essas propostas”, sinaliza Guareschi.

Não é apenas pelo Legislativo que vem os ataques contra os movimentos progressistas. A advogada Sofia Rolim, doutoranda da FGV-SP, pesquisa o caso dos 23 presos da Copa de 2014. Na véspera da final do mundial, essas pessoas foram presas sob a acusação de associação criminosa. Por meio de uma peça acusatória fragmentada e fantasiosa, essas pessoas respondem até hoje na Justiça.

“Essa lei dilui o ônus do Estado de dizer o que essas pessoas estão fazendo. Pela mera associação das pessoas pode-se dizer que estão cometendo um crime. Isso vai facilitar e fortalecer um processo de como o estado brasileiro funciona, que é transformar a verdade policial em verdade judicial”.

 

E mais:

Leia o especial “2013 – As redes contam as ruas”. Uma narrativa histórica construída com uma escuta às redes dos movimentos que protagonizaram 2013 para entender como chegamos às “Jornadas de Junho”. E uma vez lá, o que fizemos.

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