É importante, continua a pesquisadora, manter a ética em toda a condução da pesquisa – antes e depois. Para tal, faz-se necessário conhecer a realidade local e definir as demandas juntamente com a população, garantindo que os cidadãos e cidadãs estejam cientes da realização do processo em seus territórios. “Isso não é uma fase isolada do pesquisador associado ao seu projeto de pesquisa”, avalia. “O tempo da minha pesquisa deve, também, ser condizente com o tempo que a comunidade pode estar disponível”.
É comum haver a organização de mapeamentos participativos, com oficinas temáticas. A condução desta etapa varia de acordo com cada localidade, complementa Giovanna. Para exemplificar, ela cita os trabalhos que realiza nos laboratórios de pesquisa da UFC. “Nós atuamos muito na zona costeira, então os dados que devo obter daquela comunidade são em relação ao uso e ocupação, às atividades produtivas em relação à pesca, às infraestruturas pesqueiras, às principais atividades econômicas, à geodiversidade, à biodiversidade, conflitos, ameaças etc.”
A validação, pela comunidade, das informações mapeadas é crucial para garantir o sucesso da cartografia. “Só entram as informações que os moradores querem que entre. É o que pode ser dito nessa cartografia. Existe o invisível que também é produzido, aquilo que não aparece”, complementa Fransérgio, que já realizou projetos como esse relacionando-os com a militarização no Rio de Janeiro e efeitos da violência.
Pensar nas legendas, por exemplo, é um estágio importante para o historiador. Invés de apenas sinalizar com ícones tradicionais, ele prefere ter tempo para construir os signos em conjunto com a população. “Os desenhos que são produzidos tem a proporcionalidade que os participantes querem dar e uma tradicionalidade diferente de uma legenda, que, às vezes, já são pré-determinados”.
Além disso, é preciso produzir boas perguntas para a condução da cartografia social. Segundo Fransergio, é importante “historicizar” o processo, ou seja, garantir que ele tenha contexto, mas ele reforça que “outras perguntas podem vir sendo fomentadas pelos próprios participantes”.
Embora seja comum que pesquisadores, pesquisadoras e organizações sociais articulem essa proposta, “a comunidade tem total autonomia de fazer as suas cartografias, até porque o que é produzido é através da comunidade”, defende Giovanna. Segundo ela, existem formas de executar as cartografias e criar representações cartográficas que envolvem imagens de satélites e sem elaboração de mapas convencionais, chamada de cartografia efêmera. “O pesquisador leva uma problemática de pesquisa, aplica determinada metodologia, mas a comunidade sim possui essa total autonomia”, completa.
Tudo isso pode ser aplicado em contextos urbanos ou rurais. Fransérgio cita como exemplo um trabalho que fez na Favela da Maré, no Rio de Janeiro, com a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE). “Os jovens queriam produzir um vídeo, então isso virou parte da cartografia. A partir dele, eles narravam os espaços de violação”. As metodologias se modificam, continua o historiador, dependendo das ferramentas que dialogam com o local.
Essa constante atualização é necessária para que “haja diálogo com outros espaços e articulações entre as cartografias, porque, senão, acabamos isolando os espaços”, diz ele. Falar das potencialidades é importante, mas também devem ser mapeados e apontados os problemas e violências, complementa. “O espaço é uma produção de relações e relações de poder, então uma cartografia hoje pode não ser a mesma cartografia de amanhã”, diz, referenciando o geógrafo Milton Santos. Por isso, atualmente ele prefere usar termos como “cartografia insurgente e/ou decolonial, numa perspectiva de contra-colonização”.
Ferramenta de luta
As cartografias sociais têm sido usadas como dispositivos de luta, resistência e memória por diversas comunidades, sejam elas indígenas, quilombolas, ribeirinhas, pesqueiras, caiçaras etc., ao questionarem os modos convencionais de representação espacial. “No início da cartografia, era para construirmos identidades, mas a partir do reconhecimento, no qual as pessoas vão se vendo, elas também vão se percebendo como os atores principais do enfrentamento às violações do Estado”, argumenta Fransérgio.
Giovanna apresenta como exemplo os Protocolos de Consulta Livre Prévia e Informada. Esse mecanismo é parte da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, e diz que todos os povos tradicionais devem ser consultados sobre empreendimentos que afetem direta ou indiretamente seus territórios.
A partir da construção das cartografias, as comunidades conseguem iniciar também seus próprios protocolos de consulta, “nos quais elas podem estabelecer a sistematização desses conhecimentos por meio do mapeamento pela cartografia social”, completa a pesquisadora.
Outro caso, citado por ela, são os Documentos do Zoneamento Ecológico-Econômico da Zona Costeira do Estado do Ceará (ZEEC), em que foram realizadas cartografias sociais junto às comunidades tradicionais na zona costeira do estado cearense. “Esse é um dos primeiros exemplos de aplicação da Cartografia Social na construção do zoneamento costeiro no Brasil. As comunidades foram as reais protagonistas de toda essa conquista, elas reivindicaram a participação na construção desse material”, conta Giovanna.
Além disso, os mapas sociais podem ser também uma ferramenta de desenvolvimento territorial, incidindo em políticas públicas específicas. “Aqui [Rio de Janeiro], a cartografia social gerou um planejamento para construção de um aplicativo que, durante quatro anos, funcionou com categorias de denúncias criadas pela cartografia e pelos jovens”. Já na área da saúde o material foi usado para demandar políticas públicas de Saúde da Família, exemplifica Fransérgio.
Por fim, o historiador resume as cartografias sociais como uma forma “de fortalecer a identidade de quem não é visto e de quem é negada a participação na produção de conhecimento”.