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Conheça Josenita Duda, a pioneira do movimento lésbico em Pernambuco que fez a noite virar dia

No final dos anos 1970, com sua lendária Festa da Metamorfose, a militante inventou um espaço de experienciação do corpo e da liberdade em plena ditadura militar

Josenita foi uma importante ativista pelos direitos e liberdade da população lésbica – Foto: Ana Carla Lemos Cortesia

Da Igreja ao desbunde, da lesbiandade ao dito “pós-sexualismo”, da comunidade para o mundo. Nita, Jo ou, finalmente, Josenita Duda Ciríaco viveu 63 anos de vida em um território fronteiriço que, se não inventado por ela, foi tomado à força do patriarcado para ser dividido com quem tivesse disposição para a luta. Nascida no Recife, Josenita era filha de um casal de trabalhadores de Surubim, no agreste pernambucano, que migraram para a Região Metropolitana do Recife. Sua atuação política teve início em meados de 1979, quando passou a promover a lendária Festa da Metamorfose, em sua própria casa, localizada em Alberto Maia, Camaragibe, na Região Metropolitana do Recife (RMR). No evento, que a consagrou como pioneira do movimento lésbico em Pernambuco, Josenita criou um inédito espaço de discussão política para o emergente movimento homossexual do estado, onde as leituras e debates eram regadas a doses do famoso drinque batizado de Xoxota, cuja receita nunca foi revelada. 

 “Naquele momento, existia uma perseguição muito forte às pessoas não-heterossexuais, que fazia com que elas se escondessem para não sofrer violência na rua ou mesmo da família. A Festa da Metamorfose se constitui como um espaço protegido, como ela dizia, em que as pessoas podiam ser quem eram. Muitos homens, por exemplo, se montavam, usavam salto alto e maquiagem, em uma época na qual ainda não se falava no conceito de transexualidade. A própria Jô era muito livre, em uma das entrevistas chegou a dizer que era ‘pós-sexual’”, afirma Ana Carla Lemos, atual gestora de política LGBTQUIA+ da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco e mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com a pesquisa “Movimentos de Lésbicas em Pernambuco: uma etnografia lésbica feminista”.

De acordo com a pesquisadora, no final dos anos 1970, quando Josenita passou a organizar as festas, ainda não existia um movimento lésbico consolidado. No Brasil, a mais antiga sociedade civil constituída por pessoas LGBTQUIAPN+ é a Turma OK, fundada no Rio de Janeiro no dia 13 de janeiro de 1961, com o objetivo de promover cultura através do transformismo. Apenas em 1978, em São Paulo, surge o Somos – Grupo de Afirmação Homossexual, um dos primeiros a promover a articulação do Movimento Homossexual Brasileiro. 

“Os grupos eram mistos. O Movimento Homossexual Brasileiro teve muita iniciativa de homens gays que estavam se conectando às discussões que aconteciam fora do país. Quando comecei a estudar o movimento lésbico de Pernambuco, percebi que Josenita tinha uma outra história, ainda nos anos 1970. E só podemos falar em redes de organização de lésbicas no país a partir dos anos 2000. A Liga Brasileira de Lésbicas é de 2003 e, a partir de uma divisão interna dela, foi fundada a Articulação Brasileira de Lésbicas [2004]”, acrescenta Lemos.

Assim, para a pesquisadora, as redes passaram a oferecer um espaço de maior especificidade para as demandas das mulheres lésbicas, enquanto os movimentos anteriores ao século XIX dialogaram com a temática LGBT de forma mais geral. A exceção a essa regra parece ter sido a realização do I Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), em 1996, para a construção da identidade lésbica.

Josenita promoveu campanhas relacionadas à saúde quando a Aids era uma doença era associada aos homossexuais.    – Foto: Ana Carla Lemos Cortesia

Luta por visibilidade

Realizado no Rio de Janeiro, o I SENALE contou com a presença de Josenita Duda. “Nosso objetivo era o de dar protagonismo para as mulheres lésbicas, porque até aquele momento ele era todo dos homens gays. Foi nesse evento que a gente transformou o dia 29 de agosto no Dia da Visibilidade Lésbica e partir dali trouxemos a proposta de trabalhar essa data em Pernambuco”, lembra a coordenadora do grupo Articulação e Movimento Homossexual do Recife (AHMOR), Íris de Fátima, que vivenciou o I SENALE ao lado de Josenita. 

Íris conta que conheceu Josenita em 1996, durante atividades de militância, quando ainda era sindicalista.

 “Ela me chamou para fazer parte do grupo AHMOR, fundado por ela. Na época, eu jogava bola e disse que uma maneira de reunir as mulheres era através do futebol, promovendo torneios e trazendo para eles o debate sobre saúde e prevenção. Depois, Jo me levou para o Fórum de Mulheres de Pernambuco e começamos a discutir a questão da mulher lésbica dentro do movimento feminista”, comenta.

Juntas, Íris e Josenita também participaram de ações políticas importantes para os movimentos sociais do estado, a exemplo da construção do Conselho LGBT estadual. 

“Após uma conferência em Brasília, a gente conseguiu colocar o ‘L’ na frente da sigla, o que fortaleceu a discussão. Hoje em dia, chega o mês de agosto, tudo que é movimento faz ação. A gente, a imprensa, todo mundo abordando essa temática de forma respeitosa, as meninas novas de mãos dadas na rua e o próprio governo mais consciente de que somos sujeitos políticos”, acrescenta Íris.

Militante do Fórum de Mulheres de Pernambuco e da Articulação de Mulheres Brasileiras, Silvia Camurça também acompanhou Josenita em diversas caravanas para eventos no sudeste, a exemplo do 9º Encontro Feminista Nacional Brasileiro, promovido no Rio de Janeiro.

 “Foi um encontro que deixou muitos marcos no feminismo brasileiro, marcadamente popular, com a presença de mulheres negras, incluindo trabalhadoras domésticas. Uma coisa que ficou muito comentada nesse evento foi uma oficina dada por Josenita, ‘Minha Vida do Movimento e o Movimento na Minha Vida’, em que as pessoas faziam uma roda para refletirem sobre suas vidas e sobre o significado do movimento para elas”, destaca Camurça.

Com um ramo de flores colhidas no caminho para a oficina, Josenita apresentava ao grupo um texto escrito em uma página arrancada de um caderno, com algumas de suas reflexões sobre o cotidiano da militância. 

“Era uma abordagem da pedagogia dialética: olhar as coisas por diferentes lados, fugindo de um pensamento maniqueísta. Até hoje faço essa oficina, assim como outras companheiras”, assegura a militante. 

Para uma mobilização articulada no Dia da Mulher, por exemplo, Josenita sugeriu que cada manifestante levasse agulha, linha e um retalho de pano. 

“Como diz a música de Gil, ‘é minha vida que eu quero costurar na sua’. Ela trouxe a ideia de a gente fazer uma bandeira de retalhos, na qual várias coisas foram escritas. Ao mesmo tempo que são coisas que você encontra em casa, memórias, eles foram sendo atados por linhas, representando articulação através da costura, um elemento da vida de muitas mulheres. Todo esse significado de nos ligar umas às outras, partilhar lutas e celebrar nossas vidas, tudo isso era Jô”, completa.

Experiência comunitária

Silvia e Josenita se aproximaram nos anos 1980, através da militância no recém-fundado Partido dos Trabalhadores (PT). “Ela participava da Equipe Popular de Camaragibe, um grupo autogestionado com rapazes e moças ligados à ala progressista da Igreja, que faziam animação cultural na cidade usando teatro e música. Era um tipo de militância muito comum na época, que levava a discussão de problemas sociais para a população”, comenta. 

Marcado pela ampla presença de fábricas, o município de Camaragibe foi um importante espaço de articulação operária, à qual associavam-se movimentos populares e da juventude, no período da Ditadura Militar.

 “Na frente da casa em que Jô morava com sua avó, havia um areal onde a equipe popular colocou um telhado e fez uma sede. Ali eram promovidas apresentações teatrais, debates e leituras, envolvendo crianças, mulheres e idosos”, lembra Silvia. 

Nos espetáculos artísticos, Josenita já discutia a questão da homossexualidade e expressava sua identidade a partir de uma perspectiva distante da heteronormatividade corrente, sobretudo no contexto da periferia de Camaragibe.

Entusiasta da reciclagem, a militante tinha o hábito de adaptar ou customizar as próprias roupas, a partir de peças doadas ou compradas por ela.

 “Nos anos 1980, por influência do movimento hippie, muitos militantes de movimentos populares se recusaram a seguir as tendências da indústria da moda, optando pelo que já se considerava um vestuário alternativo. Por serem do teatro, Jô e seus parceiros, muitos deles de gênero dissidente, acabavam chamando muita atenção pelas roupas chamativas, muitas vezes criadas e reformadas por eles mesmos, e por fugirem do que se esperava de uma moça ou um rapaz”, coloca Silvia. 

Com a morte de sua avó, na década de 1990, Josenita arrecadou diversos livros por meio de doação e transformou o interior da casa em que vivia em uma biblioteca comunitária.

“Esse espaço funcionava como um ponto de encontro e até como uma creche, para mulheres da comunidade que não tinham onde deixar seus filhos. Era um espaço da Associação de Mulheres Entendidas, que Jô fundou depois de deixar o AHMOR, frequentado por mulheres da comunidade”, explica Verônica Ferreira, militante da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), pesquisadora e professora do curso de serviço social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). 

Em profunda sinergia com sua comunidade, Josenita vivenciou as mais diversas lutas que permeavam o cotidiano de Alberto Maia. Na área de moradia, participou de mutirões para construção de moradias, inclusive da própria.

“A casa dela, em grande parte, foi feita em regime de mutirão, inclusive uma casinha pequena que ela fez para alugar e transformar numa fonte de renda. Apesar disso, muitas vezes, ela tinha dificuldade de cobrar os inquilinos. Muitas vezes, isso também acontecia com outras pessoas que ela recebia em casa, incluindo pesquisadores que vinham desenvolver trabalhos na região.Era alguém que vivenciava um espírito socialista mais profundo, de partilhar o que tinha e não o que sobrava”, ressalta Verônica. 

Àquela altura, a casa de Josenita já havia se tornado um ponto de referência em seu bairro, em que até mesmo suas festas de aniversário convertiam-se em eventos comunitários. 

“Era como estar num espaço feminista que se mantinha além do tempo e das mudanças, onde se observava algo que já não existia em outros lugares. Eu arriscaria dizer que Jô foi uma das pessoas mais firmes na convicção de que a construção do feminismo deve acontecer na luta. Ela vivia isso como experiência e não retórica: era anticapitalista e antirracista na prática”, diz Verônica.

Josenita participou de ações políticas importantes para as mulheres lésbicas – Foto: SOS Corpo Arquivo

Saúde

Josenita também promoveu campanhas de prevenção junto a profissionais do sexo, inclusive trabalhando a questão da AIDS, sobretudo nos anos 1980 e 1990, quando a doença era associada aos homossexuais. 

“Foi uma luta muito grande contra a patente dos medicamentos antirretrovirais, uma conquista do movimento que permitiu a redução daquela mortandade imensa que houve no começo da epidemia”, coloca Carmem Silva, educadora do SOS Corpo e militante do Fórum de Mulheres de Pernambuco. 

Não raro, a militante é apontada como uma das primeiras feministas que pautaram a saúde sexual das lésbicas. Muito ligada à ginecologia natural, ela era entusiasta de novas práticas de autocuidado e questionava o poder médico, sendo ela mesma uma pessoa vivendo com questões relacionadas à saúde mental.

 “Jô sempre foi uma lutadora na área da saúde, tenho boas memórias da defesa intransigente que ela fazia do Sistema Único de Saúde. Ela foi uma das feministas presentes na 8ª Conferência de Saúde que construiu o SUS. Seu acompanhamento médico acontecia na rede pública e ela trazia para o debate muitos problemas que enfrentava com relação à medicação”, lembra Carmem Silva. 

Diagnosticada com esquizofrenia, Josenita convivia com as crises causadas pela doença com a ajuda de companheiras da militância. Quando real e imaginação se confundiam, eram outras mulheres que traziam as respostas de que precisava. 

“Ela não reconhecia esse diagnóstico, mas tinha incapacidade para o trabalho em razão dos surtos. Vivia com a ajuda do BPC [Benefício de Prestação Continuada] e também tinha passe livre nos ônibus, o que facilitava sua circulação.

Não é possível, contudo, cravar que a condição tenha contribuído para o evento que levou ao falecimento da militante. 

No dia 1 de março de 2020, em uma noite de domingo, Josenita foi encontrada sem vida no banheiro de sua casa. “O que a gente presume é que ela pode ter tido uma crise mais forte, caiu e não voltou. Ela não sofreu violência, não foi machucada, mas estava sozinha, o que foi muito dolorido”, lembra Verônica Ferreira.

Josenita foi uma das primeiras feministas a pautar a saúde sexual das lésbicas. Crédito: SOS Corpo Arquivo

Superação das dicotomias

Para Carmem Silva, Josenita deixou um legado de construção do feminismo popular vinculado à luta comunitária. Assim, sua atuação evidenciou também a luta de classes a partir da perspectiva do movimento lésbico. 

“No Fórum de Mulheres de Pernambuco, a gente acredita que o sistema de dominação e exploração do mundo é um sistema de três cabeças: capitalismo, patriarcado e racismo”, acrescenta Carmem. Desta forma, a militante critica a perspectiva política que reduz o feminismo a um movimento identitário.

 “É uma forma pejorativa de se referir aos movimentos de mulheres, negros e pessoas LGBT, como se isso gerasse uma especificidade. Ora, nós mulheres somos mais de 50% da humanidade, se nós somos específicas, os homens também são. Então, por que as questões das mulheres são específicas? Só se explica porque há uma certa esquerda que a luta de classes só se dá através de uma divisão social do trabalho entre burgueses e proletários”, argumenta.

Carmem defende que as lutas podem ter várias possibilidades e que todos os movimentos sociais atuam a partir de uma identidade coletiva. 

“No movimento sindical, por exemplo, as pessoas têm uma identidade como sindicalistas, não é? Por que não são considerados movimentos identitários se a identidade de trabalhador é uma identidade muito forte, eu diria até fundante na vida de uma pessoa? Então tem um problema de construção teórico-política de organização, de como o mundo se organiza e de uma visão de movimentos mais importantes e menos importantes. Josenita nos ensina muito nesse momento em que estamos vivendo uma penetração do fundamentalismo religioso nas classes populares”, conclui.

Confira mais algumas fotos da luta e vida de Josenita:

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