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Comunicação, arte e outras tecnologias e sabedorias ancestrais na voz de quilombolas da Baixada Maranhense

Com versos potentes e sons ancestrais, comunicadores e comunicadoras transformam a arte em ferramenta de resistência, identidade e expressão comunitária

O que é comunicação para você? Você se considera um comunicador ou comunicadora no seu território, comunidade ou coletivo?  Em algumas comunidades tradicionais, comunicar faz parte do cotidiano e pode ser tão orgânico e enraizado na vivência coletiva que muitas vezes nem chega a ser entendida enquanto algo formal. Ela é pensada para manter viva a memória e fortalecer a identidade coletiva e, para isso, as comunidades não contam apenas com uso de tecnologias associadas à inovação e progresso. As tecnologias ancestrais, que são os conhecimentos, práticas e ferramentas desenvolvidas ao longo de gerações, são muito importantes quando o objetivo é a preservação cultural, a defesa de direitos, realização de denúncias e a articulação política.

Na Baixada Maranhense, quilombolas de várias comunidades, em diferentes territórios, fazem comunicação ancestral que se baseia na resistência e na preservação da identidade cultural negra. 

Essa região é considerada uma das maiores riquezas naturais do Maranhão. Localizada no extremo norte do estado, o território tem mais de 1,7 mil  hectares de extensão e conta com 21 municípios. Trata-se de uma vasta planície em constante transformação, moldada pelo movimento das águas que altera a paisagem diariamente. A região se destaca por suas características fisiográficas marcantes, como terras baixas, planas, inundáveis, caracterizadas por campos, matas de galeria e manguezais. Os tempos seco ou de chuva decidem a paisagem da vez. Entre rios e lagoas, a natureza se renova, formando o maior conjunto de bacias lacustres do Nordeste.

E essa baixada é também uma das regiões com maior concentração de população negra do Maranhão e com a maior quantidade de comunidades quilombolas no estado, segundo o Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM). Na região cheia de belezas naturais e de cultura, quem transmite histórias, conhecimentos e tradições de geração em geração, utiliza a arte para se comunicar. 

A oralidade, muito forte nas comunidades tradicionais, atrelada com a cultura, virou uma ferramenta poderosa. Com música, cordéis e tambores, comunicadores e comunicadoras quilombolas da mesma região fazem uma comunicação que denuncia injustiças, conta histórias, combate racismo e fortalece narrativas e os laços comunitários. 

Voz que se levanta

Antônio Chagas Pereira  (o Chagas Maranhão) tem 58 anos, é do Quilombo Bom que Dói e Faxina, no Território Pau Pombo, em Santa Helena (MA) e tem a voz afinada como a principal ferramenta de comunicação. Cantor e compositor, ele usa os ritmos e melodias para abordar temas que vão do ativismo ao romantismo. 

Uma das suas canções fala sobre respeito às pessoas negras, LGBTQIAPN+ e combate à violência contra a mulher. Confira a letra abaixo (ou clique aqui para ver o vídeo de Chagas em nosso Instagram):

Nosso movimento chegou para mostrar para a população 
Quero dizer uma coisa tão certa para o povo do meu Maranhão
Não aceitamos mais preconceito, racismo é crime e sempre dá prisão 
Vamos respeitar os LGBTs e acabar com a discriminação 
A cada minuto uma mulher sofre
Feminicídio e pra quê agressão?
Se a mulher foi feita para amar
Então ame com educação
Mulher quer carinho, mulher quer amor 
Em mulher não se bate nem com uma flor 
Mulher quer carinho, mulher quer amor 
Em mulher não se bate nem com uma flor

A liderança quilombola é membro do grupo Show do Quilombo, que faz apresentações com foco na cultura e tradição dos povos quilombolas e também é mestre do Tambor de Crioula. 

  • O Tambor de Crioula é forma de expressão de matriz afro-brasileira, com forte presença no estado do Maranhão, que envolve dança circular, canto e percussão de tambores. Seja ao ar livre, nas praças, no interior de terreiros, ou então associado a outros eventos e manifestações, é realizado sem local específico ou calendário pré-fixado e praticado especialmente em louvor a São Benedito. Essa manifestação da cultura popular maranhense não tem uma época fixa de apresentação, mas pode-se observar uma concentração maior nos períodos que correspondem ao carnaval, às festas de São João e a partir do 2° sábado de agosto, quando ocorrem também as rodas de bumba-boi. Tradicionalmente, toda a festividade de bumba-meu-boi é encerrada com um tambor de crioula. 
  •  
  • Fonte: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

Chagas Maranhão conta que a paixão pela comunicação em forma de arte começou no carnaval. “Meu amor pela cultura começou assim: eu sempre tive amor pelo carnaval. E no carnaval eu aprendi a compor músicas. Comecei a cantar em blocos tradicionais da nossa cidade, nos bairros, conheci o Bumba Boi de Orquestra, fiz os testes e passei e ingressei. Depois fui para o Tambor de Crioula. Hoje me considero um mestre do Tambor de Crioula”, disse. 

O compositor tem a música e a cultura como partes importantes da luta do movimento quilombola.

“Acho que a música na minha vida foi muito importante porque a cultura que nós vivemos é muito rica e eu queria que todas as pessoas do nosso quilombo pudessem ver e ouvir. As músicas falam de tudo que traz felicidade pra gente”, contou.

O artista diz que também compõe canções românticas. “Músicas no ritmo brega, lambada e forró. Tenho dois CDs gravados e tenho mais três músicas novas. Tenho feito minha história na cultura desse jeito. Eu gosto da cultura e sei como fazer”, afirmou concordando que entende que a música pode sim ser uma ferramenta poderosa para expressar denúncias sociais, políticas e econômicas, conscientizando e mobilizando a população. 

Chagas Maranhão é cantor, compositor e liderança quilombola da Baixada Maranhense / Crédito: Letícia Queiroz

Cantores e cantoras conhecidos/as nacionalmente também costumam usar a música para fazer protestos e denúncias. Elza Soares interpreta a música Maria da Vila Matilde e canta “Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180” – contato para denunciar violência doméstica. A canção encoraja mulheres a buscar ajuda em casos de agressão. 

Bia Ferreira faz da música verdadeiros protestos. Ela canta feminismo e antirracismo e outras lutas. Uma das letras mais conhecidas é “Cota Não É Esmola”. A artista argumenta que as cotas são uma medida necessária para corrigir séculos de injustiças e desigualdades acumuladas.

A música “Preto Demais”  do carioca Hugo Ojuara, cantor de roda de samba, escancara o racismo estrutural do Brasil. “É que ele é preto demais, corre demais. Fala demais, sorri demais. Tá estudando demais, comprando demais. Viajando demais e assim não dá mais”. 

Tambores como ferramenta de comunicação

A comunicação com musicalidade também está nos instrumentos. Para os povos quilombolas do Maranhão, o tambor, além de ser um símbolo de resistência, memória e identidade cultural, é uma linguagem ancestral que comunica por meio do ritmo. O toque do tambor alegra, transmite paz, cura, afeto, conexão com os antepassados e comunica a resistência e a preservação da memória de seus ancestrais. 

Os tambores já foram usados ​​para comunicação em comunidades africanas, enviando mensagens a longas distâncias. Na Baixada Maranhense os tambores continuam comunicando. Raimundo de Jesus Ribeiro, do território quilombola Sudário, em Pinheiro (MA), afirma que o tambor está entre os instrumentos mais importantes para a população negra e quilombola do estado. O artista, que toca tambor de Crioula e participa de festas tradicionais que tem a percussão como um dos principais atrativos, diz que desde que nasceu escuta as batidas. 

“O tambor de crioula quando eu nasci já existia aqui no quilombo. Todos os meus antepassados tocavam e eu aprendi com eles. Também tocavam forró de caixa, o Bumba Boi. Tudo isso eu via. E aquilo me trouxe inspiração. Hoje sou eu quem repasso para os companheiros e companheiras mais jovens”, disse. 

Seus toques variam em tom, volume e cadência, são capazes de expressar sentimentos, contar histórias e transmitir mensagens sem precisar de palavras. A complexidade dos seus sons cria uma ponte entre o corpo, a emoção e a memória coletiva. Quem toca e escuta concorda que o tambor também traz sensação de paz. 

“A pessoa pode está triste, mas se tocar o Tambor de Crioula já melhora. O som do tambor desperta toda a tristeza e vem a alegria, o ânimo. O som mexe com a gente e torna o clima totalmente diferente”, afirmou Raimundo.

Tambores fazem parte das festividades das comunidades quilombolas do Maranhão /
Crédito: Letícia Queiroz

Versos que informam

Você já pensou em rimar para se comunicar? Essa é uma estratégia usada por outra liderança quilombola da Baixada Maranhense. 

Manoel de Jesus, de 61 anos, é do quilombo Janaubeira, em Santa Helena no Maranhão e viu nas rimas do cordel uma oportunidade para falar sobre a luta quilombola da região. O co-fundador do MOQUIBOM, que é bisneto de escravizados, fez do cordel um documento para ajudar seus aliados. A partir das histórias que ouvia dos seus pais ele contou como foi a vida difícil de um dos seus ancestrais. 

A comunicação foi tão poderosa que os versos que narram a história valorosa ecoaram por todo canto. As palavras verdadeiras sobre pessoas tão guerreiras foram uma maneira certeira de documentar sem gerar espanto. O cordel serviu de base para o laudo antropológico da comunidade. Na época buscaram histórias antigas e o cordel sobre negro Bernardo nunca mais será esquecida. 

“A poesia foi a maneira que achei para documentar a história. Para que não ficasse perdida. Decidi falar em versos porque fica mais fácil para as pessoas assimilarem. O povo não gosta muito de ler, por isso fiz os versos”, explicou Manoel.

A liderança disse que sua luta começou muito cedo e que quis contribuir com o movimento quilombola mesmo com todos os desafios impostos. “Fui vítima desse sistema e fui alfabetizado aos 22 anos. Meus pais eram analfabetos, mas tinham uma sabedoria muito grande. Hoje somos reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares e estamos nessa luta pela titulação”, afirmou. 

Manoel tem todos os versos do cordel na cabeça. Com toda gentileza, declama as rimas com delicadeza. 

 “Meus pais me contaram” – história do Negro Bernardo

Inspirai-nos musa no reino dos trovadores
para contar uma história que muito interessa aos senhores
aconteceu no século passado, o ano não lembro mais 
em uma fazenda no serrano vivia o avô do meu pai 
era escravo na fazenda, vivia uma vida de cão
tinha a profissão de ferreiro, consertava engenho, fazia foice e facão
nunca pegava em dinheiro, vivia sempre solteiro e sonhava com a libertação
mas um dia ele gritou “eu não aguento mais sofrer!” 
vou embora desse lugar e se Deus me ajudar de fome não vou morrer. 

O fazendeiro quando viu ficou bravo como leão
deu-lhe uma pisa tão grande e mandou fechar o porão
três dias ele passou na completa escuridão 
com o corpo cheio de chagas deitado naquele chão 
não lhe deram um copo d’água, imagine um pedaço de pão 
pediu a Deus nessa hora, valei-me minha senhora “dê minha libertação”
depois de três dias abriram a porta com a cara de mal 
levou Bernardo até o tronco e lhe deu um banho de sal 
que reclamava no momento “não é justo apanhar de um homem”
eu vou viver agora no mato e vou comer das frutas bravas 
das mesmas que o bicho come
só tenho o facão como bagagem e faltava o principal: 
não tinha arroz nem farinha, nem mesmo uma rede ele tinha 
e dormia no girau. 

Três meses se passaram e rezava pra Virgem Maria
o
uvindo o rugido das feras 
e tendo a lua como dia 
acordou de madrugada com o canto do acauã
viu uma campina verde chamada de Pirinan
viu uma casa sozinha e uma simpática velhinha fazendo café da manhã


Bernardo contou sua história e a velhinha acreditou
olhou para ele e sorriu e disse “meu filho a escravidão acabou”
ele deu um grito tão grande e a Deus agradeceu 
casou-se com Juliana que muitos filhos lhe deu
nas margens do rio fez um rancho 
chamou de centro do gancho e com 102 anos morreu 
quem ouviu toda essa história pensa que não foi assim
vai até a minha casa e veja uma balança que de herança deixou pra mim.

Manoel recitando cordel durante encontro de lideranças quilombolas na Baixada Maranhanse /
Crédito: Letícia Queiroz

A estratégia de Manoel com a resistência criativa alcança pessoas que muitas vezes não dão atenção. É que a rima organiza a fala, dá ritmo à denúncia, conecta o ouvinte ao orador, facilita a escuta e gera identificação. 

Essa técnica tem um papel poderoso nas lutas sociais e pode ser uma arma poética. Ela pode ser usada em formas de expressão como a poesia falada, o rap, e como os slams, por exemplo, muito utilizados principalmente nas periferias de várias cidades do Brasil para expor violências e desigualdades. O Slam Resistência é um movimento artístico e político que une poesia falada e luta social. Surgido como espaço de voz e escuta, ele promove o protagonismo de jovens que usam a palavra como ferramenta de denúncia, identidade e transformação. 

Nessa discussão, seu Manoel sabe bem da sua habilidade e que a comunicação e as batalhas (de rima e da comunidade) terão continuidade.

“Se a gente morrer nessa luta nosso sangue será semente. Outros nascerão. Essa é só uma página que escrevi. A história continua e essa geração vai escrever a próxima página”, disse o artivista. 

Guerreiras da comunicação

Vértine Brito Rodrigues é da nova geração de comunicadores da Baixada Maranhense. Do Quilombo São Raimundo, município de Santa Helena, aos 23 anos ela entende que “todo mundo é comunicador, cada um de uma forma diferente”. E que “se soubermos usar nossa comunicação de forma eficaz vamos poder levar a luta muito além do que possamos imaginar”. 

A jovem diz que em 2023 foi indicada pelo Núcleo Mulheres Guerreiras da Resistência do MOQUIBOM para fazer registros e textos informativos. “Decidimos que precisávamos criar uma rede onde pudéssemos fazer divulgações e cobrar nossos direitos”, disse Vértine.

Foi então que ela começou usar o próprio celular, câmera fotográfica e as redes sociais do movimento para fazer publicações. Atualmente a jovem participa de formações e oficinas sobre comunicação e utiliza as ferramentas de forma estratégica. 

“A comunicação é muito importante, ainda mais quando se fala sobre ser quilombola. Uma comunicação eficaz é essencial. Através das nossas páginas transmitimos  reivindicações sobre nossos direitos, sobre os impactos do agronegócio nas nossas comunidades, quando se tem ameaças sobre lideranças quilombolas”, disse Vértine. 

Para as comunidades quilombolas, a comunicação vai além da fala ou da escrita — ela é território, história, luta e resistência. Comunicadores e comunicadoras da Baixada Maranhense mostram que a comunicação estratégica, seja ela cantada, falada, rimada, declamada ou escrita é essencial na defesa do território, na documentação da memória e na valorização da identidade quilombola. Quando feita a partir do próprio povo, com sua linguagem e seus modos de viver, a comunicação se torna uma forma de continuar resistindo e existindo. 

(Esse texto foi escrito por Letícia Queiroz, comunicadora quilombola, após Encontro de Segurança Integral para quilombolas de municípios da Baixada Maranhense. O encontro aconteceu em maio de 2025 e contou com participação da Escola de Ativismo, que identificou os comunicadores e comunicadoras citados nesta reportagem durante oficina de comunicação popular estratégica e segura para integrantes do MOQUIBOM).

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