Escola de Ativismo

Como enfrentar o calor? Lutas e táticas das periferias urbanas contra o colapso ambiental

Ativista comenta sobre as desigualdades e o racismo ambiental e lista algumas táticas para enfrentar a crise climática de maneira coletiva e no dia-a-dia

Passagens de ar são uma sabedoria prática da arquitetura das periferias urbanas para aliviar o calor. (Foto l Ana Carolina Mello)

O Brasil, por ser um país tropical, já enfrenta naturalmente temperaturas elevadas.  No entanto, nem todo mundo sofre com os efeitos de forma igual. Fatores como desmatamento, queimadas, urbanização desordenada, ausência de infraestrutura verde e a concentração de indústrias em áreas específicas intensificam as mudanças climáticas e os seus efeitos sobre determinadas populações.

O impacto da crise é mais severo em áreas periféricas urbanas, frequentemente utilizadas para a instalação de indústrias, depósitos de lixo, estações de tratamento de resíduos e outros empreendimentos que contribuem para a poluição e o aumento da temperatura local. Em geral, são regiões marginalizadas, com pouca arborização, escassez de espaços verdes e infraestrutura precária. Quando essas decisões políticas e econômicas recaem, quase exclusivamente, sobre territórios racializados — ou seja, áreas onde vive majoritariamente uma população negra, indígena ou não-branca historicamente marginalizada — e pobres, estamos diante de um caso de racismo ambiental.

A médica e ativista Jurema Werneck analisou essa realidade em seu estudo “As injustiças climáticas atingem as mulheres negras e periféricas”Os dados revelam a desigualdade: em Belém, 75% da população residente em áreas de risco é negra, com renda domiciliar média de R$ 1.700. Em São Paulo e Recife, esse percentual é de 55% e 68%, respectivamente, com renda média de R$ 1.100 por domicílio. As mulheres negras, chefes de família e com rendimento de até um salário mínimo, são o grupo mais exposto às consequências da crise climática.

Essa exposição se traduz em  insegurança alimentar, dificuldade de acesso à saúde, insalubridade e sobrecarga emocional. Em dias mais quentes, essas mulheres sofrem com o agravamento de doenças pré-existentes, dificuldades para dormir, aumento do estresse e da exaustão. A precariedade das moradias, muitas vezes construídas com materiais que absorvem e retêm calor, torna a vida doméstica ainda mais difícil, especialmente para quem precisa cuidar de crianças, idosos ou pessoas doentes.

Enquanto isso, um levantamento do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa, organizado pelo Observatório do Clima, revelou que entre 2019 e 2022, o Congresso Nacional aprovou 93 propostas que ampliam as emissões de gases de efeito estufa, de um total de 165 votações consideradas relevantes para a agenda climática. O estudo mostra ainda que parlamentares ligados aos setores da agropecuária e da mineração, majoritariamente alinhados à direita, têm adotado uma postura sistemática de apoio a medidas que aumentam a degradação ambiental.

Diante desse quadro, o que podemos fazer enquanto populações afetadas e ativistas? Que saídas existem nas lutas autônomas e em nossos cotidianos? Como navegar a luta sabendo que espaços institucionais estão dominados por interesses contrários às nossas existências?

Para pensar essa questão, a Escola de Ativismo conversou com Mikael Ferreira Santos, estudante de Engenharia Mecânica na UERJ e idealizador do projeto Climatização Acessível: Estratégias para Redução do Impacto do Calor em Comunidades Periféricas, criado para o programa Jovens Cientistas da Secretaria Municipal de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. O objetivo do projeto é analisar os impactos do calor extremo em comunidades periféricas e desenvolver soluções simples e acessíveis para mitigar seus efeitos. 

O projeto tem dois eixos principais. O primeiro é documental. Mikael visitou comunidades periféricas e ouviu moradores sobre como enfrentam as altas temperaturas. As respostas revelaram o uso de estratégias como baldes com água em frente ao ventilador, toalhas molhadas sobre o corpo e improvisações com papelão para criar sombra. No entanto, esses mesmos relatos apontam problemas sérios como falta de água, cortes frequentes de luz e ausência de atendimento médico quando os efeitos do calor, como desmaios, dores de cabeça, queda de pressão e exaustão, se agravam.

Em depoimento para o documentário realizado por Mikael e pela produtora Osmlksfilmam , a moradora Nem, da comunidade da Mangueira, contou que já trabalhou de sutiã com quatro ventiladores ligados para tentar suportar o calor. Nesse relato, tivemos acesso a mais uma camada do problema: a conta de luz.

Nem, moradora da Mangueira, mostra sua cozinha. Por causa do calor, ela relata que a conta de luz fica cada vez mais alta. (Foto l Ana Carolina Mello)

Resistência nos territórios

Em regiões mais quentes e com menos infraestrutura, a necessidade de usar ventiladores ou aparelhos de ar condicionado aumenta, mas os moradores não têm renda suficiente para arcar com esse custo. Quem mais precisa consumir energia para manter a própria saúde é quem menos pode pagar. Ao mesmo tempo, empresas de energia e fabricantes de equipamentos continuam lucrando com a exclusão.

A proposta de emenda à Constituição que previa a redução das tarifas de energia para famílias de baixa renda  segue sendo adiada no mesmo congresso apontado acima como um dos principais responsáveis pelo aumento do calor. A pauta, ainda que urgente, é negligenciada e demonstra mais um sinal de relação direta entre lucro e exclusão no cerne do racismo ambiental. 

O projeto Climatização Acessível propõe um curso formativo em dois módulos. O primeiro oferece orientações sobre ventilação natural, instalação de telhados verdes, técnicas de sombreamento e uso de materiais que reduzem a absorção de calor. O segundo, é técnico e voltado à capacitação profissional. A ideia é ensinar a instalação e manutenção de equipamentos de refrigeração e climatização, o que pode gerar trabalho e renda dentro da própria comunidade. O curso estará disponível no Nave de Conhecimento, a partir de novembro de 2025. 

Segundo Mikael, a atuação comunitária precisa ocupar os espaços onde o Estado não chega. “As comunidades periféricas já buscam soluções há décadas, muitas vezes por conta própria, mas essas alternativas são improvisadas e nem sempre saudáveis. O objetivo é compartilhar conhecimento técnico e acessível, capaz de gerar transformação local”, diz.

Os efeitos, da ação, longe de serem soluções individuais, fazem parte um esforço comunitário de resistência. “Quando uma moradora aprende a instalar um sistema de resfriamento com baixo custo e passa esse saber adiante, ela não está só combatendo o calor. Para o ativista, além das  Ela está criando uma rede de autonomia e resistência coletiva”, finaliza.

  • Climatização acessível e reduação de danos: 4 estratégias práticas

    Mikael reuniu compartilhou conosco quatro das dicas práticas para combater o calor que serão disponibilizadas no curso Climatização Acessível para Comunidades Periféricas. Essas soluções foram construídas com base em saberes populares, experiências comunitárias e princípios de engenharia acessível, combinando conhecimento técnico com práticas sustentáveis e de fácil aplicação no dia a dia das periferias.

    1. Balde com água e gelo na frente do ventilador

    Saber tradicional transmitido pelas mais velhas da comunidade. Funciona como um “ar-condicionado caseiro”, refrescando o ar que circula. O ideal é usar blocos grandes de gelo, que derretem mais devagar.

    2. Tinta reflexiva no telhado ou nas paredes externas

    Tintas reflexivas ou “tintas térmicas” ajudam a refletir a radiação solar, diminuindo a temperatura interna da casa. Elas reduzem em até 10 °C o calor interno, especialmente em casas com telhado de zinco ou laje exposta. Apesar do custo inicial, a durabilidade e o impacto são altos, e há mutirões e programas sociais que ajudam a aplicar.

    3. Sistema de colmeia para ventilação

    Inspirado em técnicas naturais, esse sistema usa garrafas PET ou estruturas de barro para canalizar o vento. As “bocas” estreitas das garrafas aumentam a velocidade do ar que entra nos cômodos. É barato, sustentável e pode ser montado com reaproveitamento de materiais.

    Uma solução criativa e sustentável: ao cortar garrafas PET ao meio e fixá-las com o gargalo voltado para dentro da casa, o ar entra mais rápido e fresco. Isso acontece graças ao estreitamento da garrafa, que acelera o vento, uma ideia baseada no efeito Venturi. Fácil de montar, esse sistema reaproveita materiais e melhora a ventilação em cômodos quentes, sem custo.

    4. Sombras inteligentes com plantas ou coberturas

    Criar sombras com plantas trepadeiras, lonas ou até mesmo telhados verdes reduz a incidência direta do sol nas paredes e janelas. Árvores e plantas próximas às casas também ajudam a refrescar o ambiente ao redor.

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