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Ativismo cigano desafia estigmas e busca visibilidade e políticas públicas

Ativistas ciganas Sara Macedo e Hayanne Iovanovitchi, do Coletivo Ciganagens, falam sobre o movimento de luta e dos desafios dessa população na busca por um mundo mais justo para suas comunidades

Foto: Sara Macedo e Hayanne Iovanovitchi

“A arte e os povos ciganos estão totalmente imbricados”. É assim que Sara Macedo, cigana da etnia Calón e artivista, descreve a riqueza cigana que, mesmo diante de tantas injustiças e silenciamento, seguem mantendo suas culturas, modos de vida e oralidade forte e orgânica. Nos territórios cheios de afeto ou nas estradas, os povos ciganos lutam por políticas públicas enquanto reafirmam que existir e resistir são atos políticos de coragem e amor.

Mas você já ouviu falar sobre os povos ciganos? O que você sabe sobre essa população presente em tantas partes do Brasil e do mundo? Já parou para pensar que talvez o que você “conheça” seja  parte dos estereótipos criados e espalhados de forma preconceituosa? Ou já pensou no motivo de você ouvir falar tão pouco sobre essa população?  

Lideranças ciganas afirmam que o preconceito, a falta de informações e de ações das autoridades impedem o conhecimento pleno sobre esses povos e deixam essas comunidades sem acesso a serviços públicos de qualidade, que respeitem suas especificidades e modos de vida. Os impactos geram violações de direitos, violências e um movimento de apagamento dos povos que são fontes inesgotáveis de cultura e diversidade.

Quem são os povos ciganos?

Os povos ciganos fazem parte do grupo de Povos e Comunidades Tradicionais reconhecidos nacionalmente, assim como indígenas, quilombolas, ribeirinhos e tantos outros. Comunidades tradicionais são grupos que mantêm modos de vida próprios, conectados com seus territórios, saberes ancestrais e formas coletivas de organização. O Decreto  Nº 6.040, DE 7 DE FEVEREIRO DE 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, define essas comunidades como “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”. 

Na teoria, os direitos das comunidades tradicionais são protegidos por uma série de normas, incluindo a Constituição Federal, Convenções Internacionais, leis e decretos. Estes direitos abrangem aspectos como igualdade, não discriminação, acesso à terra e território, educação intercultural, segurança alimentar e nutricional e participação nas decisões que afetam seus interesses. Mas na prática, essas comunidades enfrentam desafios históricos, como a negação de direitos, a violência territorial e a invisibilidade nas políticas públicas.

A cigana Sara Macedo, que também é assessora jurídica popular, bailarina e escritora, conta que “cigano é etnia”, mas também é, “pertencimento, reconhecimento mútuo e comunidade”. Essa relação se mantém firme mesmo diante de tantos estereótipos e discriminações. A jovem diz que um dos grandes desafios para os povos ciganos no Brasil é mostrar sua diversidade e romper com a falsa ideia de como os brasileiros pensam os povos ciganos de forma homogênea. 

“As comunidades ciganas representam um universo marcado pela simbiose ou oposição entre a identidade cultural supranacional e as identidades locais, regionais e de parentalidade em ambientes multiculturais, sejam itinerantes, ou sedentários, em territórios únicos, devido a nossa singularidade. Há tantas particularidades, que uma pessoa cigana de apenas uma etnia e de um território não poderia responder. Se formos pensar por meio da característica étnica supranacional, isso dá o indicativo do tom que devemos ser pensados. Línguas e sub línguas regionalizadas, a oralidade como um preceito muito forte do cigano brasileiro, proibindo a divulgação de nossas línguas como forma de proteção interna, é outro exemplo dessas particularidades”, afirma. Sara ao chamar atenção para a pluralidade dessas comunidades e etnias.

Mesmo diante das injustiças e quase total invisibilidade, os povos ciganos resistem.

Ativista Sara Macedo segura facão durante ação do movimento dos povos ciganos 

Foto: Sara Menezes/arquivo pessoal 

Coletivo Ciganagens

E foi com o objetivo de formar uma rede de apoio mútuo que um grupo de ativistas ciganos criou o Coletivo Ciganagens. Além de fortalecer ações e narrativas ciganas, o grupo leva informação, arte, educação e atua em prol dos direitos dos Povos Ciganos no Brasil de forma sempre pautada pelo ativismo anticolonial, antirracista e antissexista, bem como pela via da integração LGBTQIAPN+.

Sara é uma das integrantes do Coletivo. Ela conta que o grupo surgiu em 2020, durante a pandemia do coronavírus, e segue produzindo e divulgando materiais educativos que somam na luta ativista cigana, como guias e cartilhas sobre diversidade, arte, juventude e mulheres.

A artivista explica que é importante poder contar as histórias sobre povos ciganos com pessoas ciganas sendo protagonistas. “Sempre tive vontade, desde criança, de mudar minha história familiar e comunitária, criar outra narrativa, não me transformar no que a sociedade não-cigana diz da gente. É muito perigoso entrar nessa estrada da assimilação e começar a repetir que as coisas são assim e que nada pode mudar… Ainda mais pra um povo tão associado à resiliência. O coletivo Ciganagens é essa vontade de não caminhar por essa estrada”.

Sara afirma que o Coletivo Ciganagens aborda vários temas. “Desde denúncias relacionadas a tragédias nas comunidades, memoriais de nossas datas, divulgação de vitórias ciganas, materiais educativos, construção de audiovisuais, dança, artes visuais… Enfim, de tudo um pouco, porque infelizmente é necessário, somos um povo altamente desconhecido no Brasil”. 

Invisibilidade cigana e negação de direitos

No Brasil, os povos ciganos enfrentam várias invisibilidades, incluindo a estatística. A falta de dados oficiais sobre a população cigana é uma das barreiras para o acesso a direitos. Por isso, uma das principais reivindicações desses povos é a inclusão no Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como grupo étnico específico e com a devida contabilização da sua população total.

Sara informa que essa reivindicação é feita desde o começo do século 21 e que o Ministério Público Federal já recomendou que essa contagem seja realizada. “As pesquisas servem para garantir o acesso desta população brasileira aos serviços públicos da área de saúde, educação, trabalho e segurança, bem como para o enfrentamento ao racismo institucional, ao preconceito e à discriminação”, destaca a recomendação.

“Um povo que sequer é contabilizado no território, não tem como ter verba destinada. Ser reconhecido no Estado tem muito haver com quem tem direito à cidadania, e quem não tem”, disse Sara. 

A ativista no movimento cigano Hayanne Iovanovitchi diz que as reivindicações dos povos ciganos perpassam todos os direitos fundamentais. “Ainda hoje o acesso é negado para muitos de nós. Queremos acessá-los como todos os cidadãos brasileiros, mas que nossas especificidades sejam consideradas. Nossas demandas envolvem educação, saúde, cultura, segurança pública, território, pois nossas tradições devem ser consideradas para que consigamos acessar esses direitos dentro da nossa realidade”, explicou. 

Para ela, é urgente dar visibilidade e soluções às lutas e reivindicações dessa população. “Houve uma evolução “pro form” – por formalidade – , os povos ciganos estão sendo colocados em projetos de governo e planos próprios, no entanto, nada muda nas dificuldades enfrentadas. Continuamos vivendo por nossa própria conta e risco.  Os povos ciganos precisam ser realmente enxergados por parte da estrutura para que sejam inclusos e suas especificidades sejam consideradas em cargos de tomada de decisão”, disse Hayanne. 

Coletivo Ciganagens fortalece ações e narrativas ciganas

Foto: Sara Macedo

Desconstruindo estereótipos

Além da invisibilidade e negação de direitos, as comunidades ciganas no Brasil ainda enfrentam as barreiras dos rótulos, generalizações, invenções e estereótipos.  As imagens construídas para justificar exclusões e as narrativas distorcidas reforçam políticas de apagamento, dificultam a inclusão em políticas públicas e alimentam o preconceito cotidiano.

“Só existe, praticamente, o estereótipo cigano. O cigano que é conhecido por uma gigantesca parte das pessoas é o estereótipo e a fantasia, construído por pessoas não ciganas, que sobrevivem de práticas chamadas de “esotéricas” ou “exóticas”. Esse estereótipo gera muito dinheiro no Brasil, principalmente para pessoas que sequer conhecem ciganos de verdade, justificados num ‘misticismo recreativo’”, disse Sara Macedo. 

A situação faz com que o movimento cigano precise concentrar forças em mais um campo de enfrentamento. 

“Infelizmente grande parte de nosso ativismo que deveria estar concentrado em outras pautas, está em combater esse véu das mistificações, chegando ao ponto de perguntarem a pessoas da etnia, porque não nos vestimos igual ao ‘ciganos piratas’. É um trabalho cansativo e que não vemos fim. Cigano não é religião, nem um culto, e não há como ser batizado para se tornar um membro da comunidade. Cigano é etnia, pertencimento, reconhecimento mútuo e comunidade”, explicou. 

A ativista diz que um dos grandes estereótipos é de que os povos ciganos vivem de forma itinerante por critérios culturais e de escolha, uma realidade muito distante da materialidade atual do mundo e da vida dessa população. 

“Hoje no Brasil, praticamente somente a minha etnia, Calón, sobrevive de forma itinerante, ou semi itinerante. Estima-se que 20% dos Calón ainda estão na estrada. Categorizar todas as etnias ciganas como nômades é negar todas as complexidades do mundo que estamos inseridos. Um mundo que expulsa e desterritorializa pessoas por conta de sua racialidade e etnia, assim como da falta de condições materiais, naturais e climáticas para sobreviver como nossos antepassados”, disse Sara.

A ativista e bailarina explica que sedentarizar [fixar residência num determinado lugar] acaba sendo um destino da maioria dos ciganos porque não existem boas condições de estar no trecho, ainda que alguns ainda estejam. “É uma tradição que segundo os mais antigos, tem haver com o trânsito de estar com todos os primos, rotacionar a terra, acesso a novos alimentos, convivência com outras culturas e permanência onde somos bem vindos. Também tem haver com uma veia muito não proprietária, o que acaba gerando outros problemas no presente, como não ter onde sobreviver dignamente, para muitos ciganos que vivem em comunidade. Sei que os indígenas também já viveram assim, e o aldeamento que hoje é bastante defendido para manter as suas existências, também foi uma imposição institucional. Modos de vida diversos são sempre desrespeitados, e há que se lutar muito para não esquecer o que é nosso, e o que não é”. 

O movimento ativista cigano afirma que desconstruir os estereótipos é responsabilidade coletiva e que esse é um passo essencial para construir uma sociedade que respeite todas as formas de existir em diferentes territórios. Há muita luta pela frente. Esse enfrentamento pode gerar um mundo mais justo para as pessoas ciganas. 

“Precisamos de mais de nós dentro da universidade, dos espaços de tomada de decisão e dos espaços de pesquisa. Queremos falar de nós e para nós e queremos que entendam que somos capazes e não precisamos de tutela alguma, conseguimos caminhar com nossas próprias pernas. Precisamos de oportunidades, que nossa existência seja reconhecida e valorizada, pois a formação desse país tem muito de nosso sangue e suor”, finalizou a ativista Hayanne Iovanovitchi. 

TEXTO

Letícia Queiroz

jornalista quilombola, repórter da Escola de Ativismo

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