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As resistências ao fundamentalismo religioso e os futuros horizontes de ação

É preciso compreender a Bíblia, Deus, Fé e toda essa dimensão da religiosidade como forma de compreensão do mundo, e que através dessas linguagens podemos construir uma libertação que une a classe trabalhadora por um projeto comum de justiça.

Dejamos lo que nos divide y busquemos lo que nos une

Camilo Torres

É impossível desvincular a religião dos projetos políticos de dominação e libertação na América Latina. Desde o colonialismo, a religiosidade foi utilizada para oprimir, violentar, escravizar como também para empoderar, organizar e libertar. Hoje em dia, a força da religião no continente e o avanço de uma gramática religiosa na política institucional é notória. Cada vez mais religiosos, progressistas e reacionários, têm se articulado para propagar seus projetos, linguagens e demandas no cotidiano da fé e também das esferas de incidência pública.

O fundamentalismo religioso tem se tornado realidade em todos os países de Nuestra América. Após a instauração do neoliberalismo nos territórios latino-americanos, houve um avanço da direita nas esferas políticas e sociais na região. Esse processo se refletiu não apenas pela retirada de direitos da classe trabalhadora, mas também em discursos de enfraquecimento das instituições democráticas.

O fundamentalismo é, portanto, um dos instrumentos para esse projeto neoliberal e sua manutenção, que tem como objetivo a fixação de uma verdade única, imutável e inquestionável – sendo assim, é antidialógico e antiplural. O dossiê n° 59 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social aborda esse tema (1), aprofundando e apontando as origens do fundamentalismo e essa suposta verdade absoluta, dogmática, que vai muito além da religião, pois constrói modelos de vida políticos, econômicos e sociais.

É fato, como mencionamos acima, que a dimensão religiosa para o povo latino-americano e caribenho é algo que faz parte de nossa história, foi e é uma ferramenta fundamental para as resistências contra as opressões e para o avanço de lutas populares. Porém, os fundamentalismos têm se infiltrado em todos os espaços, para além do âmbito religioso, aliado a políticas neoliberais e extrativistas, e avançado fortemente.

É importante para o campo popular entender que o fundamentalismo religioso não seja algo que apenas os religiosos têm que lidar. Este fenômeno não está mais apenas dentro das paredes dos templos, antes está nas grandes instituições, nos espaços de poder e, cada vez mais, entranhado a nossa vida cotidiana, afetando as minorias e enfraquecendo a luta popular.

Dessa forma, compreendemos que esses enfrentamentos não devem ser segmentados e fragmentados, mas antes devemos pensar estratégias entre o campo popular e os cristãos ecumênicos e progressistas, de toda a América Latina, para combater esses discursos. Não se vence o fundamentalismo nas urnas! A esquerda não deve cometer os mesmos erros de se acomodar com a vitória das eleições presidenciais e deixar a temática da religião como algo insignificante para a reconstrução do país.

 

Nosso povo tem fé

Nesse caminhar tortuoso da religião cristã na América Latina, mantemos viva a tradição da resistência a partir da fé, buscando compreender a complexidade da relação entre fé, luta e classe trabalhadora. A pesquisa “Evangélicos, Política e Trabalho de Base”, do Tricontinental Brasil, tem encarado a tarefa de pensar metodologias de pesquisa que estejam enraizadas na experiência do povo e na ciência popular. Carregamos dentro de nós os vícios das metodologias aprendidas na pesquisa burguesa, que visam uma neutralidade entre o objeto e o pesquisador, não se importando, necessariamente, quanto a uma transformação social a partir do conhecimento gerado. Assumir que a não-neutralidade é um primeiro passo para nos entendermos pesquisadoras de um instituto marxista, que nas palavras da companheira Kelli Mafort do MST, visa a “prática revolucionária”.  Nos colocamos enquanto pesquisadoras-militantes para esse diálogo profundo com a militância, na produção de conhecimento a partir de experiências concretas e articulação contra os fundamentalismos em Nuestra América.

Antes da pandemia chegar no continente latino-americano, o Tricontinental Brasil organizou uma roda de conversa com evangélicos do acampamento Marielle Vive do MST, no interior do estado de São Paulo. O tema central desse diálogo com a militância era acerca das possibilidades e contradições vividas no cotidiano entre a fé e a luta. Grande parte dos evangélicos que estavam presentes no encontro disseram que estar no MST era uma missão divina. Mas o mais interessante foi ver, nas tantas falas, as negociações entre as diversas identidades de nosso povo e, no caso, entre serem crentes e militantes de um movimento popular aguerrido contra tudo o que o fundamentalismo religioso propaga. No acampamento conversamos com Luiza, de 45 anos, missionária e frequentadora da igreja pentecostal Assembleia de Deus, que afirmou: Um missionário disse que ia para um lugar que teria muita luta. Aprendi na igreja a ajudar, dar esperança. Eu gosto de lutar. No MST, aprendi o papel do coletivo, aprendi a me relacionar, é um desafio, uma realização, uma conquista”. O adventista José Wilson nos contou que, numa formação política, utilizou uma passagem bíblica para afirmar seu pensamento e que uma companheira, a princípio, não gostou do uso da Bíblia naquele espaço; porém, no final da formação, eles dialogaram acerca do ocorrido. Wilson defendeu que há espaço para política e para a religião e que, na sua percepção, as duas coisas se complementam.

Quando negligenciamos a dimensão religiosa do nosso povo criamos um buraco entre “nós e eles” – indivíduos da mesma classe. O povo latino-americano é, em sua maioria, cristão – todos os países da América Latina contam com pelo menos 50% da população cristã (com exceção do Uruguai, com 44,4% de cristãos), sendo que a grande maioria ultrapassa os 80% (entre católicos e evangélicos). Mais de 90% da população professa uma fé cristã em países como Bolívia, Equador, Paraguai e Peru. Os dados (2) também mostram um trânsito religioso que segue sendo tendência em muitos países. Guatemala, Nicarágua e Honduras atualmente diminuíram a distância do percentual entre católicos e evangélicos. El Salvador, Brasil, Costa Rica, Panamá, República Dominicana e Bolívia têm, todos, mais de 20% da população evangélica. Se olharmos mais de perto, nos territórios mais populares, esse percentual se amplia.

É nesse contexto que temos que olhar a religião e seu poder de mobilização. A classe trabalhadora vive sua religiosidade de forma cotidiana, em seus ritos individuais, em suas conversas cúmplices com Deus, em seus valores e nos espaços coletivos de comunhão. É nesse cotidiano que nossa classe segue caminhando para uma identidade crente forjada na palavra irmão mais do que trabalhador. Isso demonstra o poder da religião nas bases, em que os códigos de linguagem são outros, não mais de um povo que se organiza exclusivamente a partir de sindicatos, coletivos sociais de luta, movimentos populares, mas nas igrejas. Não é à toa, como pudemos ver, mas fruto de uma metodologia que dialoga diretamente com as necessidades objetivas e subjetivas de nossa classe. Não se faz revolução sem um sujeito revolucionário e, no caso latino-americano, ousamos dizer, não avançaremos para nenhuma transformação radical de nossa sociedade sem considerar, na prática, a formação cristã de nosso povo.

A esquerda precisa compreender que não podemos simplesmente acabar com a religião, até porque na prática isso não se concretiza; mas devemos olhar para os elementos que fundamentam essa fé e as possibilidades de diálogo em suas fissuras para o combate dos fundamentalismos que hoje hegemonizaram o discurso religioso também nos territórios mais pauperizados de nossa classe.

Se uma nova roupagem da fé se instaurou nas casas das famílias trabalhadoras, é a partir dali, de um resgate inovador das nossas teologias libertadoras de luta que iremos partir para combater o fundamentalismo religioso e construirmos uma nova morada onde a fé seja respeitada e inclusive absorvida como uma linguagem legítima de nossa classe. Temos que estar abertos a uma compreensão mais abrangente da religião, como nos ensinou Fidel Castro: “no puede haber nada más antimarxista que la petrificacion de las ideas” (3).

O fundamentalismo religioso não será extinto a partir da nossa racionalidade marxista, já que é um projeto de poder imperialista, com financiamento estadunidense, que ganhou corações e mentes da nossa classe. Nossa disputa é nessa batalha de ideias e emoções, no diálogo profundo e respeitoso com o povo crente que encontrou na Bíblia um caminho possível de sobrevivência diante das tantas adversidades vividas em nosso continente. A Bíblia se tornou o livro da classe trabalhadora, caminhando lado a lado com o povo. É por conta dela que muitos fiéis em situação de vulnerabilidade são instigados a aprender a ler e é na Bíblia que buscam respostas, força e direcionamento.

É preciso compreender a Bíblia, Deus, Fé e toda essa dimensão da religiosidade como forma de compreensão do mundo, e que através dessas linguagens podemos construir uma libertação que une a classe trabalhadora por um projeto comum de justiça. A base dos movimentos populares – que lutam por terra, moradia e outros direitos sociais – estão repletas de religiosos, cristãos e cristãs comprometidos com a luta e a fé. Não se trata de quem não tem uma identidade religiosa fingir a pertença, mas de nos abrirmos ao mundo do outro, ao conhecimento do outro. Como Paulo Freire aponta, em uma linda passagem do seu livro Pedagogia da Esperança, ninguém é “mais sabido” que ninguém, os saberes são feitos para serem dialetizados, na certeza da capacidade do outro, assim como de nós mesmos, sermos mais. O conhecimento do outro, mesmo quando equivocado, pode ser desconstruído, refeito, superado – assim como os nossos –, e nos alimentarmos das linguagens que nos escaparam é tarefa militante junto a nossa classe.

Mulheres em luta durante a Marcha das Margaridas de 2023

Foto: Vitória Rodrigues

Resgatar o pensamento do marxista italiano Antonio Gramsci acerca da religião e do cristianismo, em especial o papel da Igreja Católica, nos auxilia para irmos além da discussão da crença ou não crença em Deus, mas antes compreender a religião e sua força em movimentar corações e mentes para a ação política. Gramsci, dirigente do Partido Comunista da Itália, vai além da máxima de Marx acerca da religião ser o ópio do povo, pois, como conhecedor de sua cultura e história, não podia ignorar que a religião, sendo instrumento de denúncia e protesto frente às mazelas sofridas, é também potência de criação coletiva de novos valores éticos e morais frente a uma realidade opressora.

A compreensão de Gramsci sobre a religião não é ingênua, pois ele compreende as opressões históricas contra o povo em que a religião foi protagonista, muitas vezes domesticando a classe trabalhadora e explorando suas fragilidades. Porém, o marxista italiano encontra na religião o fermento necessário para a mobilização das massas na construção de um senso comum contra-hegemônico. Ou seja, a religião traz em si uma dupla face em disputa; é tanto alienação quanto força transformadora.

Nesse sentido, a defesa puramente anticlerical e ateísta em nossas táticas revolucionárias será empecilho com roupagem elitista, inclusive, contra a superação de visões fundamentalistas que hoje ocupam nossos territórios. Como vimos, a direita cristã soube agir estrategicamente em um campo que por anos fomos nós, marxistas, que avançamos – atuando lado a lado com os trabalhadores mais empobrecidos, sujeitos da transformação social, rumo a uma sociedade livre de qualquer opressão.

A ilha que nos anima a caminhar

Nessa tarefa, Cuba tem muito a nos ensinar sobre as possibilidades de avanço no diálogo entre a construção da Revolução e articulação entre fé e luta. Após um momento inicial, muitos religiosos que permaneceram em Cuba não se sentiam, de fato, parte do processo revolucionário, dada a resistência do Estado às Igrejas, fruto de uma leitura ainda limitada do tema pelo marxismo europeu e também pela origem estadunidenses das igrejas evangélicas no país. Essa resistência ainda era muito presente na década de 1970, mas foi lentamente abrindo espaços para uma nova perspectiva de atuação conjunta entre Igreja e Estado.

Segundo a teóloga cubana Gisela Pérez, a Revolução Cubana se deu conta que nem todos os líderes religiosos eram contrarrevolucionários, pelo contrário! Em um processo de aproximação com o tema, Fidel Castro reconheceu que, de fato, os evangélicos haviam sido discriminados e se comprometeu a corrigir esse erro. Ele e os membros das Igrejas sabiam que esse processo não seria fácil dada a formação antirreligiosa de boa parte dos membros do Estado, mas, com o avanço do diálogo, as tensões iniciais da Revolução abriram espaços para uma aliança estratégica entre Estado e Igreja, principalmente com as igrejas evangélicas. Em entrevista para Frei Betto, realizada em 1985, Fidel afirma que percebia que os evangélicos tinham um compromisso forte com a população mais humilde, além de terem uma disciplina militante em suas igrejas. A pesquisadora cubana Caridad Massón afirma que o aspecto inicial antirreligioso da Revolução passa a mudar a partir da década de 1980, fruto de ações pró-revolucionárias de religiosos cubanos e também pela Teologia da Libertação que avançava em toda a América Latina. Sendo assim, não era mais possível ignorar a força social do segmento religioso em nosso continente e, consequentemente, em Cuba.

A Revolução Cubana soube, com o tempo, acolher e incorporar os elementos de fé para o fortalecimento da luta. Podemos aqui também contar com Gramsci: “Os socialistas marxistas não são antirreligiosos; o Estado operário não perseguirá a religião; o Estado operário solicitará aos proletários cristãos a lealdade que todo Estado demanda de seus cidadãos” (4). Enquanto esquerda devemos sim criticar e denunciar setores da religião, aliados ao poder, como instrumento de alienação da classe, mas precisamos reconhecer, como Gramsci aponta, a força do cristianismo popular que se torna resistência e voz de denúncia frente a opressão burguesa. 

Se o fundamentalismo conseguiu, a partir de muito financiamento e trabalho de base nos territórios, criar um senso comum entre os trabalhadores mesmo que em contradição com suas vidas cotidianas, será a partir do concreto e das tantas linguagens que atravessam a vida desses trabalhadores que construiremos uma possibilidade crítica e revolucionária de viverem sua fé. Reelaborar criticamente a fé do nosso povo é um caminho necessário e urgente para consolidarmos a filosofia da práxis no continente latino-americano.

Do ponto de vista das estratégias marxistas a partir dos ensinamentos gramscianos, podemos refletir que um primeiro passo é olharmos para as forças contra-hegemônicas do campo religioso que já seguem resistindo. Sabemos que o crente não é simplesmente passivo frente à sua religião, mas que é através dela que ele produz e reproduz visões de mundo – não sem contradições, sem reformulações. Como Gramsci aponta, “há um catolicismo dos camponeses, um catolicismo dos pequenos burgueses e operários da cidade, um catolicismo das mulheres e um catolicismo também variado dos intelectuais” (5). Assim é com os evangélicos também, dado que quando falamos de religião, falamos de uma multiplicidade de uma mesma crença. Portanto, é importante não generalizar e homogeneizar os evangélicos na América Latina, os colocando enquanto fundamentalistas ou massa de manobra. Um ponto importante que Gramsci enfatiza é o distanciamento entre os pensadores e o povo, ou seja, uma reflexão que não tem chão, não tem concretude, não tem como pensar a religião hoje sem que estejamos enraizados nos territórios, absorvendo e trocando as experiências cotidianas com a fé. Não basta para nós, enquanto esquerda, repetirmos o sentimento antirreligioso de alguns pensadores do marxismo ocidental para lidar com a religiosidade no Sul Global, que está presente não apenas na América Latina, mas no continente africano e asiático também, independentemente se é o cristianismo ou não.

Se o centro do debate fundamentalista no continente latino-americano tem sido a bandeira contra a chamada “ideologia de gênero”, é nesse caminho que as resistências se firmam, se consolidam e só podem avançar dialetizando linguagens entre a fé e a luta. O fundamentalismo reage aos avanços do campo progressista, temos que olhar para esses avanços e fortalecê-los junto a nossa classe, a partir dessa outra linguagem que, como dissemos, escapou ao marxismo nas últimas décadas. É a partir daí que o marxismo consegue desatar os nós no diálogo popular e avançar nesse campo ocupado pelos nossos inimigos. Se reinventar não é inventar o novo a partir do vazio, é saber, conhecer e dialogar com caminhos que seguem resistindo muitas vezes isolados do campo popular marxista. Resgatar nossa história recente e enxergar as resistências que ocupam também nossos territórios é iniciar a construção de pontes necessárias e imprescindíveis entre fé e luta. Nesse sentido, nos colocamos a tarefa de contar uma nova história, não tão nova assim, de recomeços, resistências de lutas concretas e cotidianas em nosso continente.

 

Agonia: o re-encantar e o re-conhecer os nossos

O peruano marxista José Carlos Mariátegui, usando o termo Agonia, de Miguel de Unamuno, nos chama para a necessidade de nos re-encantarmos. Tanto os revolucionários marxistas quanto os cristãos revolucionários foram almas agônicas, em luta por esse re-encantamento (6). Essa agonia revolucionária, para Mariátegui, se traduz também na superação do antagonismo entre fé e ateísmo, igualando a emoção revolucionária com a emoção religiosa. Na verdade, Mariátegui quer dizer que o que nos move, seres agônicos por justiça, é mais do que qualquer instituição pode limitar, é um sentimento profundo na busca por algo que ainda não se realizou e que teimosamente buscamos construir como necessidade vital. Mariátegui amplia o conceito costumeiro de falar de religião e nos provoca afirmando que uma revolução é sempre religiosa, dialetizando, portanto, o materialismo e a religião, a mística revolucionária e a fé, os cristãos e os marxistas.

É importante frisar que a partir desses entrelaçamentos do cotidiano, que a fé evangélica também é força e fôlego para a luta, e isso não é de agora. É necessário lembrar figuras importantes de protestantes da Teologia da Libertação, como Richard Shaull (1919-2002), teólogo presbiteriano norte-americano que viveu muitas décadas no Brasil, e dedicou seus estudos no diálogo entre o cristianismo e categorias marxistas, relacionando temas sociais com a fé evangélica, sendo nomeado de “teólogo da revolução”. Rubem Alves (1933-2014), aluno de Shaull, e que em tese de doutorado traz pela primeira vez o termo “Teologia da Libertação”. As contribuições de Alves são imensas, pois traz a dimensão do corpo e da subjetividade no contexto da luta de classes. Ainda na reflexão teológica, nomes como a teóloga e biblista mexicana Elsa Tamez (1951- ); a teóloga argentina Marcella Althaus-Reid (1952-2009), a teóloga brasileira e ativista da Comissão Pastoral da Terra, Nancy Cardoso (1959 – ) aprofundaram a dimensão do corpo e da sexualidade a partir da teologia feminista e queer, trazendo críticas à Teologia da Libertação que, por inúmeras vezes, excluiu mulheres e dissidentes de gêneros e sexualidades das abordagens e práxis teológicas. 

Além desses nomes, importantes organizações protestantes surgiram criando um ecumenismo evangélico de resistência, como ISAL – Iglesia y Sociedade en América Latina (Igreja e Sociedade na América Latina), em um desdobramento da assembleia em Huampani, perto de Lima, Peru, que foi resultado das Conferências Evangélicas Latino-americanas (CELAS), “talvez, a iniciativa mais importante na criação de um movimento de libertação entre os protestantes latino-americanos” (7). Outras organizações foram se formando, como o Conselho Latino-americano de Igrejas (CLAI), que surgiu em 1978 a partir da Conferência Evangélica de Oaxtepec, no México; Departamento Ecumênico de Informação (DEI) em Costa Rica; o Centro Ecumênico para a Evangelização e Educação Popular (CESEEP), em São Paulo, ou o Centro Ecumênico para Documentação e Informação (CEDI) no Rio de Janeiro, hoje KOINONIA Presença Ecumênica, e ações dessas instituições no Conselho Mundial de Igrejas.

Em Cuba, no ano de 1987, dentro do contexto que já abordamos e compreendendo a necessidade de avançar do ponto de vista ecumênico na defesa da revolução, foi fundado o

Centro Martin Luther King a partir do trabalho dos pastores batistas Raúl Suárez Ramos e Clara Rodés e outros religiosos. O CMLK se baseia

“numa ética emancipatória de inspiração cristã; no compromisso consciente, rebelde e profético com o povo cubano, a Revolução e o socialismo; na defesa da vida plena de todos os seres humanos como centralidade, sem exclusões ou discriminações, vinculada ao respeito aos direitos da natureza. Assume diversidade geracional, gênero, cor da pele, origem, opções sexuais, ocupações, conhecimentos e crenças, com sentido ecumênico e de justiça social” (8).

Atualmente não é possível falar em defesa da Revolução e no enfrentamento ao fundamentalismo religioso sem entender o papel do CMLK que a partir de talleres que contemplam temas conjunturais e históricos, abarcando a solidariedade latino-americana com uma metodologia libertadora, tem sido pólo de discussão e construção de conhecimento nessa tão necessária junção entre fé e luta. Além disso, o Centro tem se debruçado em inovar suas ações nos territórios tanto no sentido da solidariedade como na construção de um projeto de educação popular para todo o país. O Centro é uma referência hoje tanto dessas ações práticas quanto de aprofundamento teórico, por meio de publicações em livros e revistas, e segue fortalecendo a imagem de Cuba como farol da esquerda latino-americana.

Assim como o CMLK, o Ceseep – Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular tem sido para o Brasil e a América Latina um espaço fundamental de formação e resistência:

O Ceseep (…) é um centro latino-americano e ecumênico de formação popular, fundado em 1982, com o objetivo de prestar serviços às lideranças de movimentos sociais e comunidades das diferentes Igrejas cristãs em seus trabalhos pastorais e de promoção humana (9).

Inspirado na pedagogia de Paulo Freire, o Ceseep se tornou uma grande referência de Educação Popular, um espaço que abarca as tantas religiosidades do povo latino-americano em uma relação dialética entre teoria e prática junto aos movimentos sociais e ecumênicos. Além de ser um espaço de debate e formação, o Ceseep tem produzido materiais a partir dessas experiências e abre seus espaços para que circulem reflexões de todo continente latino-americano.

Para além dos grupos religiosos e ecumênicos que seguem resistindo e construindo novas teologias libertadoras, os movimentos sociais não religiosos também têm se (re)organizado para debater a questão religiosa para além de uma pauta conjuntural, colocando o tema como estratégico no diálogo com a base da classe trabalhadora. No Brasil, o Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras por Direitos (MTD), a partir da tarefa de reconstruir novas metodologias de trabalho de base urbana, constatou, durante as ações de solidariedade na pandemia, a necessidade de construir um trabalho concreto e cotidiano com o povo religioso. Essa percepção se deu por um grupo de militantes de Brasília, que compreendeu que era impossível o diálogo com a base em que estavam atuando sem aprofundar o papel da religião para nossa classe, assim como sem absorver e aprender a linguagem religiosa que atravessava seus cotidianos.

A partir dessa percepção, os militantes do MTD se articularam com religiosos progressistas de diversas vertentes, assim como com a pesquisa “Evangélicos, Política e Trabalho de Base”, do Tricontinental Brasil. Passamos, Tricontinental e MTD-DF, a realizar com esse grupo reuniões periódicas de formação e debate sobre a realidade buscando construir novas possibilidades de ação nos territórios a partir da fé. Para Márcia, militante do MTD: “Cabe a nós a tarefa de compreender a espiritualidade evangélica no cotidiano do nosso povo; retomarmos o diálogo contínuo e não sazonal para que se construa uma outra narrativa nos territórios; olharmos para nós, enquanto esquerda, e o que estamos oferecendo, e sempre lembrar-nos que trabalho de base e militância são feitos com amizade – é uma paixão indignada e cheia de ternura”.

O MST também é um exemplo importante desse processo necessário. A direção do Movimento tem buscado junto a atores do campo religioso progressista, como a Frente Evangélica pelo Estado de Direito, grupo evangélico criado em 2016 contra o golpe sofrido pela ex-presidenta Dilma Rousseff, possibilidades de diáĺogo com os trabalhadores pentecostais a partir do programa “Papo de Crente” que por meio de uma linguagem (neo)pentecostal, toca em temas importantes na disputa contra o fundamentalismo religioso. A proposta do Programa é contar com vozes do (neo)pentecostalismo progressista que consigam abordar temas conjunturais por meio da fé do nosso povo. O Papo de Crente está no ar desde 2021 em diversas rádios do Brasil em grande parte do território nacional e tem sido um espaço importante na batalha de ideias. Para além deste diálogo direto com o público crente, o MST tem se desafiado a inserir o debate religioso com sua militância, ajudando a construir espaços de formação também lado a lado com a pesquisa sobre evangélicos do Tricontinental Brasil, por meio de seminários abertos introduzindo o tema, além de espaços de debate e aprofundamento em diversas de suas instâncias estratégicas. 

A luta na América Latina e Caribe: internacionalismo em marcha

Nesse contexto, o Tricontinental Brasil tem buscado se organizar enquanto campo popular latino-americano para compreender de que forma os fundamentalismos têm afetado o cotidiano da classe trabalhadora, rural e periférica e as comunidades tradicionais nas lutas pela terra, direitos trabalhistas, direitos sexuais e reprodutivos, políticas afirmativas para a população negra e LGBTQIA+. Para além de uma análise conjuntural, pensamos que era importante articular estratégias entre os campos populares e religiosos progressistas em Nuestra América para conter esses avanços fundamentalistas e propor novas formas criativas dessas saídas. O momento presente aponta fragilidades em muitos discursos fundamentalistas, e é importante explorar essas fissuras as expondo e propondo outras frestas de luz. 

A partir dessa análise, o Tricontinental, o MST e o Centro Martin Luther King têm se reunido periodicamente desde abril de 2021, de forma virtual, para a construção de uma articulação revolucionária ecumênica contra os fundamentalismos religiosos na América Latina junto aos movimentos religiosos, ecumênicos e populares não-religiosos, a partir da compreensão do fenômeno e de suas especificidades em cada país, além da construção de uma agenda comum mirando a vida cotidiana dos trabalhadores. Em maio de 2022, ainda de forma virtual, este coletivo junto a Unión de Trabajadores Rurales sin Tierra, Movimiento Nacional Campesino Indígena, Somos Tierra da Argentina, realizou o “Encuentro de Articulación Abya Yala: Enfrentando Fundamentalismos”. O Encontro contou com a presença de oito países (Brasil, Colômbia, Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Venezuela e Uruguai), representados por cerca de 50 militantes, ativistas, pesquisadores e educadores populares de organizações de diversas naturezas, com a proposta de ser um primeiro momento dessa articulação. Buscamos compreender quais experiências têm sido desenvolvidas para o enfrentamento dos fundamentalismos nos campos cristãos, feministas, populares e que pautas e agendas comuns devemos fortalecer nesse enfrentamento.

Dentre as tantas contribuições, alguns apontamentos merecem ser destacados, dentre eles, que precisamos começar pela realidade com os temas mais concretos, sobre a água, sobre o trabalho, sobre as desigualdades, de que temos que ir para a disputa e com palavras “carinhosamente rebeldes”, e de que toda ação comunitária deve partir da educação popular, em uma conexão concreta, cotidiana, presencial.

A proposta é que esses encontros se transformem em publicações sobre o fenômeno com um caráter propositivo de ações, assim como criar mecanismos que nos deem subsídios práticos para o enfrentamento dos fundamentalismos em nossos países, junto aos nossos movimentos. O primeiro Encuentro pôde nos mostrar que diversas ações têm sido realizadas e que é urgente criarmos uma unidade no sentido da construção de uma ação efetiva e um movimento contra-hegemônico, abarcando a fé do povo latino-americano. Esse é um caminho que os coletivos envolvidos sonham em percorrer enquanto movimentos populares e ecumênicos na América Latina. Sabemos que não é fácil criar uma articulação político-religiosa de luta, porém, entendemos que é uma tarefa necessária para frear o fundamentalismo religioso em nossos territórios e que temos nossa própria história como inspiração. Dessa forma, buscamos construir a partir de tarefas a curto, médio e longo prazo, entendendo que uma articulação internacional leva tempo para ser construída, mas que não nos falta coragem.

Considerações (não tão) finais

Nos colocamos, portanto, na tarefa, enquanto militantes e revolucionários, de satisfazer a necessidade de infinito que existe em nós, e isso não se resolve única e exclusivamente pela razão, mas por aquilo que move nossa classe, nos seus desejos mais profundos – na crença por algo que ainda não se concretizou, que é impalpável. Transformar a salvação individual em projeto coletivo é traduzir a urgência do novo a partir da nossa história, de um olhar crítico sobre a realidade e também, da fé, no sentido profundo que Mariátegui nos ensinou, a partir daqueles que crêem: “Quem faz a história são os homens possuídos e iluminados por uma crença superior, por uma esperança sobre-humana; os demais homens, são o coro anônimo do drama”.

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