Nessa tarefa, Cuba tem muito a nos ensinar sobre as possibilidades de avanço no diálogo entre a construção da Revolução e articulação entre fé e luta. Após um momento inicial, muitos religiosos que permaneceram em Cuba não se sentiam, de fato, parte do processo revolucionário, dada a resistência do Estado às Igrejas, fruto de uma leitura ainda limitada do tema pelo marxismo europeu e também pela origem estadunidenses das igrejas evangélicas no país. Essa resistência ainda era muito presente na década de 1970, mas foi lentamente abrindo espaços para uma nova perspectiva de atuação conjunta entre Igreja e Estado.
Segundo a teóloga cubana Gisela Pérez, a Revolução Cubana se deu conta que nem todos os líderes religiosos eram contrarrevolucionários, pelo contrário! Em um processo de aproximação com o tema, Fidel Castro reconheceu que, de fato, os evangélicos haviam sido discriminados e se comprometeu a corrigir esse erro. Ele e os membros das Igrejas sabiam que esse processo não seria fácil dada a formação antirreligiosa de boa parte dos membros do Estado, mas, com o avanço do diálogo, as tensões iniciais da Revolução abriram espaços para uma aliança estratégica entre Estado e Igreja, principalmente com as igrejas evangélicas. Em entrevista para Frei Betto, realizada em 1985, Fidel afirma que percebia que os evangélicos tinham um compromisso forte com a população mais humilde, além de terem uma disciplina militante em suas igrejas. A pesquisadora cubana Caridad Massón afirma que o aspecto inicial antirreligioso da Revolução passa a mudar a partir da década de 1980, fruto de ações pró-revolucionárias de religiosos cubanos e também pela Teologia da Libertação que avançava em toda a América Latina. Sendo assim, não era mais possível ignorar a força social do segmento religioso em nosso continente e, consequentemente, em Cuba.
A Revolução Cubana soube, com o tempo, acolher e incorporar os elementos de fé para o fortalecimento da luta. Podemos aqui também contar com Gramsci: “Os socialistas marxistas não são antirreligiosos; o Estado operário não perseguirá a religião; o Estado operário solicitará aos proletários cristãos a lealdade que todo Estado demanda de seus cidadãos” (4). Enquanto esquerda devemos sim criticar e denunciar setores da religião, aliados ao poder, como instrumento de alienação da classe, mas precisamos reconhecer, como Gramsci aponta, a força do cristianismo popular que se torna resistência e voz de denúncia frente a opressão burguesa.
Se o fundamentalismo conseguiu, a partir de muito financiamento e trabalho de base nos territórios, criar um senso comum entre os trabalhadores mesmo que em contradição com suas vidas cotidianas, será a partir do concreto e das tantas linguagens que atravessam a vida desses trabalhadores que construiremos uma possibilidade crítica e revolucionária de viverem sua fé. Reelaborar criticamente a fé do nosso povo é um caminho necessário e urgente para consolidarmos a filosofia da práxis no continente latino-americano.
Do ponto de vista das estratégias marxistas a partir dos ensinamentos gramscianos, podemos refletir que um primeiro passo é olharmos para as forças contra-hegemônicas do campo religioso que já seguem resistindo. Sabemos que o crente não é simplesmente passivo frente à sua religião, mas que é através dela que ele produz e reproduz visões de mundo – não sem contradições, sem reformulações. Como Gramsci aponta, “há um catolicismo dos camponeses, um catolicismo dos pequenos burgueses e operários da cidade, um catolicismo das mulheres e um catolicismo também variado dos intelectuais” (5). Assim é com os evangélicos também, dado que quando falamos de religião, falamos de uma multiplicidade de uma mesma crença. Portanto, é importante não generalizar e homogeneizar os evangélicos na América Latina, os colocando enquanto fundamentalistas ou massa de manobra. Um ponto importante que Gramsci enfatiza é o distanciamento entre os pensadores e o povo, ou seja, uma reflexão que não tem chão, não tem concretude, não tem como pensar a religião hoje sem que estejamos enraizados nos territórios, absorvendo e trocando as experiências cotidianas com a fé. Não basta para nós, enquanto esquerda, repetirmos o sentimento antirreligioso de alguns pensadores do marxismo ocidental para lidar com a religiosidade no Sul Global, que está presente não apenas na América Latina, mas no continente africano e asiático também, independentemente se é o cristianismo ou não.
Se o centro do debate fundamentalista no continente latino-americano tem sido a bandeira contra a chamada “ideologia de gênero”, é nesse caminho que as resistências se firmam, se consolidam e só podem avançar dialetizando linguagens entre a fé e a luta. O fundamentalismo reage aos avanços do campo progressista, temos que olhar para esses avanços e fortalecê-los junto a nossa classe, a partir dessa outra linguagem que, como dissemos, escapou ao marxismo nas últimas décadas. É a partir daí que o marxismo consegue desatar os nós no diálogo popular e avançar nesse campo ocupado pelos nossos inimigos. Se reinventar não é inventar o novo a partir do vazio, é saber, conhecer e dialogar com caminhos que seguem resistindo muitas vezes isolados do campo popular marxista. Resgatar nossa história recente e enxergar as resistências que ocupam também nossos territórios é iniciar a construção de pontes necessárias e imprescindíveis entre fé e luta. Nesse sentido, nos colocamos a tarefa de contar uma nova história, não tão nova assim, de recomeços, resistências de lutas concretas e cotidianas em nosso continente.