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Aprendendo com Milton Santos: "O futuro é algo que jamais existiu antes"

O geógrafo Milton Santos é um alicerce do pensamento social brasileiro e o Núcleo de Educação Popular da Escola de Ativismo se sentou para conversar com seus textos e ideias

“O futuro é algo que jamais existiu antes. E quando o número de possibilidades concretas aumenta, os futuros possíveis são mais numerosos e ficam mais perto de nós, porque o presente conflitivo é um terreno fértil. É por isso que o discurso ideológico atual é tão violento buscando eliminar todo diálogo. É preciso fazer ver que nada de diferente é possível e que o amanhã será como hoje”.

Milton Santos

Milton Santos foi um gigante das ciências humanas no Brasil e além, um destacado pensador e geógrafo que sentou praça na Universidade de São Paulo. Homem negro, baiano, conheceu o mundo dando aulas em conceituadas universidades do Norte e do Sul do planeta. 

Um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX, Milton Almeida dos Santos nasceu em 1926, em Brotas das Macaúbas, na Bahia, e faleceu em São Paulo, em 2001, não podendo acompanhar os mandatos iniciais de Lula à presidência da República. Suas maiores contribuições intelectuais foram na Geografia, inicialmente muito influenciado pela Geografia crítica francesa, mas posteriormente buscando novas epistemologias no Sul Global. Realizou estudos inovadores sobre a urbanização do Terceiro Mundo e ficou notadamente conhecido na reta final de sua vida como um crítico assíduo e contundente do processo de globalização nos anos 1990.

Mas a realidade é que seu pensamento reverbera forte ainda hoje.

O que selecionamos a seguir, são trechos de duas longas entrevistas com o pensador realizadas pelas professoras Odette Seabra e Mônica de Carvalho e pelo jornalista José Corrêa Leite, compiladas no livro Território e Sociedade – entrevista com Milton Santos, publicado pela editora Fundação Perseu Abramo em 2000.

Numa dada conferência em meados da década de 1990, organizada pelos estudantes de Geografia e realizada na quadra poliesportiva de uma universidade  no interior de São Paulo, Milton Santos assim respondeu a um estudante acerca da ideologia: “A ideologia está nas coisas”, frase que provoca conversas no grupo de geógrafos desde então. Na entrevista, a mesma ideia está mais elaborada: “Somos cercados por coisas que são ideologia, mas que nos dizem ser a realidade”.

Pensador materialista de inclinação marxista, tinha uma visão muito apurada da globalização, que nomeava como globalitarismo, e, em dados momentos da entrevista, parece que está falando exatamente de nosso tempo: “Estou querendo chamar a atenção para o fato de que a atual globalização exclui a democracia. A globalização é, ela própria, um sistema totalitário”.

Ou ainda:  

“A competitividade impõe o reino do fugaz, cria uma tensão permanente, que leva a esse atordoamento geral em que vivemos. Essa competitividade, possibilitada pelas atuais condições objetivas, é resultado da perversidade da globalização, e a única solução que parece viável é ir remando também. Quando um jovem opta pela competitividade como norma de vida é sociologicamente possível compreender, porque isso lhe aparece como a única defesa possível num mundo que não é nada generoso. É preciso mostrar-lhe que há outros caminhos, ainda que difíceis ou pouco conhecidos”.

E mais:

“O que seria essa globalização – para fazer uma concessão aos outros – atual? Como sonho, a globalização é antiga, mas, como realidade, ela só começa a mostrar seus primeiros lineamentos depois da Segunda Guerra Mundial. No meu modo de ver, há uma confluência entre novas condições técnicas e novas condições políticas. As novas condições técnicas, que foram permitidas pelo progresso científico, vão trazer algumas novidades. Uma delas é que o planeta se torna conhecido. O rei espanhol Felipe II chegou a dizer, em um determinado momento, ‘no meu Império o sol não se põe’, porque imaginava ter o mundo nas mãos, mas ele não sabia que o mundo era esse”.

E atirava contra o complexo de vira-latas que é tão comum na sociedade brasileira: “Esse é o problema: opor à crença de que se é pequeno, diante da enormidade do processo globalitário, a certeza de que podemos produzir as ideias que permitam mudar o mundo”.

Naquela manhã, a programação havia começado com uma sessão solene no Senado Federal, homenageando a Marcha. No mesmo dia, foi finalmente aprovado o Projeto de Lei que indicava a inclusão de Margarida Maria Alves no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria.

Foi assim, que após 40 anos de um assassinato bárbaro na frente de sua casa, a grande homenageada do encontro teve sua luta em vida por ser mulher, sindicalista e trabalhadora rural que ameaçava os interesses de poderosos, reconhecida. Para além disso, suas sementes se espalharam mais longe do que ela jamais ousou imaginar. A resistência está firmada.

O professor Milton Santos em uma sala de Aula

Foto: Cláudio Rossi/Divulgação

Território & sociedade

Temos aqui uma contribuição importante para pensar o território.  “O território, pra mim, não é um conceito. Ele só se torna um conceito utilizável para a análise social quando o consideramos a partir de seu uso, a partir do momento em que pensamos juntamente com aqueles atores que dele se utilizam. A globalização amplia a importância desse conceito. Em parte por causa da competitividade, cujo exercício, levando a uma busca desesperada de uma maior produtividade, depende de condições oferecidas nos lugares de produção, nos lugares de circulação, nos lugares de consumo. Quer dizer, há lugares mais apropriados para aumentar o lucro de alguns, em detrimento de outros”.

E aqui, uma contribuição importante para pensar o território e as políticas públicas. Santos apontava como o lucro vai se sobrepondo às populações, num processo no qual o capital privado manda mais do que o Estado:

“Como vemos, há um uso privilegiado do território em função das forças hegemônicas. Estas, por meio de suas ordens, comandam verticalmente o território e a vida social, relegando o Estado a uma posição de coadjuvante ou de testemunha, sempre que ele se retira, como no caso brasileiro, do processo de ordenação do uso do território. Então, sob o jogo de interesses individualistas e conflitantes das empresas, o território acaba sendo fragmentado”.

E defendia que, a análise de um território não pode prescindir das inúmeras visões de quem vive no território:

“Agora, a retificação que ando fazendo é que não serve falar de território em si mesmo, mas de território usado, de modo a incluir todos os atores. O importante é saber que a sociedade exerce permanentemente um diálogo com o território usado, e que esse diálogo inclui as coisas naturais e artificiais, a herança social e a sociedade em seu movimento atual”. Neste ponto, Santos reforça algo que deve estar compreendido nos processos de educação popular, de construção coletiva, de participação popular, de luta territorial que considera os atores e atrizes locais. Ninguém sabe mais do território do que quem habita, vive e está nos territórios. 

“Eu creio que isto se dá porque o território mostra todos os movimentos da sociedade. Talvez, por isso, o geógrafo tenha podido perceber primeiro a crise do planeta… Porque nós não temos escolha, somos obrigados a enfrentar todos os movimentos que se dão no território e tentar, bem ou mal, interpretá-los, descrevê-los. Talvez, por isso, a geografia esteja fazendo esses avanços”.

"O território, pra mim, não é um conceito. Ele só se torna um conceito utilizável para a análise social quando o consideramos a partir de seu uso, a partir do momento em que pensamos juntamente com aqueles atores que dele se utilizam."

Limites da globalização & apoio mútuo

Milton Santos tinha muito claro a distinção entre espaço urbano e espaço rural — e como cada um atende às demandas do capital globalizado:

“O espaço banal, a horizontalidade, é sempre um limite à globalização. E é por isso que o campo permite uma subordinação maior ao capital do que a cidade que, ao contrário, se opõe à difusão mais rápida e fácil do processo globalitário. O que é curioso é que a intervenção nesses espaços urbanos e metropolitanos é muito mais fácil, mas os estados só querem intervir no outro espaço – o da verticalidade -, porque ele responde ao interesse do capital e seu mando pode se impor no campo com menos resistências”.

Apesar da voracidade do processo globalitário, o eminente geógrafo confiava muito na potência dos de baixo para constituir pontos de oposição ao capitalismo globalizado, sobretudo dos que vivem no que era chamado de Terceiro Mundo, com seus desejos que não são compatíveis com as demandas de quem busca lucro a qualquer custo:

“Há um centro de estudos da violência na USP ao qual devemos boas análises. Mas deveria ser criado também um centro de estudos sobre a solidariedade entre os pobres. É evidente que isso não dá manchete, mas poderíamos compreender melhor as diferentes formas de ajuda mútua, assim como saber de que modo repercute a produção de um discurso que escapa à indústria cultural mas que é cultura. Tudo isso poderia ser objeto de preocupação e ajudaria na produção de um outro discurso mais consistente e politicamente eficaz”.

“É que no local tem-se a obediência e a revolta. Há sempre as duas coisas. Evidente que há a cultura de massas, que está presente em todas as partes, mas existe também a cultura popular que renasce a cada momento, porque há uma produção de pobreza permanente. A cada vez a pobreza fica maior, e mais numerosos os objetos e os desejos, para usar uma expressão psicanalítica…. O lugar geográfico é também o lugar filosófico da descoberta, porque nele se batem forças contraditórias. Há, de um lado, os que buscam o lucro a todo custo e se apropriam dos pontos mais vantajosos e há todos os demais, mais ou menos afetados por uma situação que desejam modificar para melhor”.

 Podemos pensar obediência e revolta como forças de conservação e forças de transformação. Forças que querem manter as coisas como estão, e forças que querem mudar a realidade das coisas, querem revolucionar. São forças sempre presentes e em permanente tensão. Interessante também para nós, ativistas, pensar o lugar geográfico como o lugar da descoberta, o lugar onde não se sabe e isso representa o exato momento onde novos saberes podem ser produzidos.

Novidades do Terceiro Mundo

“Não creio que a Europa ou os Estados Unidos possam nos dar nada de bom nesse sentido. Não imagino que possa haver uma mudança histórica profunda e válida vinda dos Estados Unidos ou da Europa. Virá dos pobres, dos ‘primitivos’ e ‘atrasados’, como nós, do Terceiro Mundo, somos considerados. São os pobres os detentores do futuro. O problema de todas as épocas é saber como vai se dar essa ruptura. E as rupturas se deram antes que todos soubessem como elas iam se dar… Os que, em épocas anteriores, pensavam na possibilidade da mudança também podiam ser tidos como otimistas ou visionários. Acho que a diferença, hoje, vem do conhecimento das condições materiais que já estão presentes, muito mais fortemente presentes”.

Milton Santos também se coloca diante do que fora descrito pelo crítico cultural britânico Mark Fisher, de que seria mais fácil pensar o fim do mundo do que o fim do capitalismo:

“O futuro é algo que jamais existiu antes. E quando o número de possibilidades concretas aumenta, os futuros possíveis são mais numerosos e ficam mais perto de nós, porque o presente conflitivo é um terreno fértil. É por isso que o discurso ideológico atual é tão violento buscando eliminar todo diálogo. É preciso fazer ver que nada de diferente é possível e que o amanhã será como hoje”.

"O lugar geográfico é também o lugar filosófico da descoberta, porque nele se batem forças contraditórias. Há, de um lado, os que buscam o lucro a todo custo e se apropriam dos pontos mais vantajosos e há todos os demais, mais ou menos afetados por uma situação que desejam modificar para melhor".

Neoliberalismo & poder do dinheiro

Para o geógrafo baiano, o neoliberalismo é um projeto muito claro de poder do capital privado, que independe das vontades das populações, contribuição significativa para pensar os ativismos:

“A retirada do Estado do processo de regulação da economia, dada como sendo um benefício para a sociedade, está, de fato, relacionada com a possibilidade de a empresa comandar a sociedade, porque é ela que acaba comandando a vida social, com o apoio das instituições internacionais e, em certos casos, como no Brasil, também com o apoio do Estado”. O que diria Milton Santos quando, em 2021, o Congresso Nacional aprovou a autonomia do Banco Central do Brasil? Aliás, autonomia do governo eleito pela maioria do eleitorado brasileiro e, do outro lado da mesma moeda (trocadilho proposital) apresenta a face mais real da dependência do mercado financeiro.

O dinheiro, o “déspota mais tirânico”, tem lugar central em suas análises e teorias, e é compreendido de formas distintas de acordo com sua distinção geográfica:

“O dinheiro comparece na minha análise, junto com a informação, como um grande tirano ideológico. Porque afinal ele se torna, de fato, o equivalente universal. Antes de universal, em potência, era universal em relação às coisas que se vendiam. Hoje, a produção do valor antecede ao uso, o que é outra característica da globalização, o uso deixou de ser o que induz ao valor. Então, o papel do dinheiro também mudou de natureza e hoje ele é um ingrediente da produção tout court e dessa produção ideológica do mundo, e tem um papel formidável, extraordinário, no processo globalitário. O dinheiro é o déspota mais tirânico”.

“O dinheiro de uma pequena cidade na Amazônia não é o dinheiro paulistano. Aqui nós temos quantos derivativos? São Paulo tem dezenas de tipos de dinheiro, e em muitos lugares só há, mesmo, o dinheiro-dinheiro, quer dizer, aquele dinheiro que é dinheiro moeda. Impõe-se esse tipo de análise sobre a distinção geográfica do dinheiro, para conhecer melhor, por exemplo, como as diversas modalidades de dinheiro entram no tecido de cada grupo social, dentro da sociedade territorializada. Isso tem que ser feito e será feito quando o homem passar a ser central na preocupação dos políticos e da política e não apenas o dinheiro…”

Ideologia, teoria & utopia

Milton Santos via a ideologia capitalista impregnada nas mercadorias produzidas por ele como nunca visto antes, assim como há ideologia na própria caracterização dos territórios:

“A minha impressão é que o mundo de hoje produziu algo extraordinário, esses objetos que já nascem carregados de ideologia. Outra coisa a assinalar é que as próprias situações são ideologia, quer dizer, dão-se como ideologia: ‘o bairro perigoso’, a ‘favela assassina’, o ‘bairro residencial’. O discurso da chamada realidade já é ideológico”.

 Assim como as soluções oferecidas pelo neoliberalismo que produz o sujeito consumidor de mercadorias: o shopping center, o condomínio fechado, o pacote turístico, as formações enlatadas, os aeroportos e as farmácias cada vez mais parecidas com os shoppings.

Para ele, a boa teoria não prescinde de uma boa utopia, e via como um obstáculo para construirmos uma utopia viável em nosso tempo a tomada de pontos de vistas europeus e estadunidenses:

“Toda teoria é, pois, embrião de uma utopia. Quando se exclui a utopia, nós nos empobrecemos imediatamente. O próprio ofício de teorizar pressupõe uma utopia. As épocas que subestimam a utopia são épocas de empobrecimento intelectual, ético e estético”.

“A utopia deve ser construída a partir das possibilidades, a partir do que já existe como germe e, por isso, se apresenta como algo factível. Acho que é isso que vivemos hoje. Mas há um obstáculo que é nosso modo de pensar, europeu, ocidental. O problema é que pretendemos pensar tudo a partir de uma epistemologia europeia, e agora, norte-americana. Então, ficamos prisioneiros de modelos exógenos e também pessimistas, o que é a marca do Ocidente. A ruptura com esse modo de pensar me parece necessária e urgente”.

“E nessa vontade de mudança, que inclui a utopia. ‘Nada é impossível’. ‘É proibido proibir’. E hoje somos ridicularizados quando pretendemos ser utópicos. Mas isso está ligado à globalização. Temos que tentar romper com esse círculo terrível para restaurar a utopia, que afinal pode ser científica, como uma crise de alguma forma prevista”.

O local como ponto focal

Por fim, gostaríamos de compartilhar a posição de Milton Santos sobre o povo e sobre a importância do dado local em detrimento do global:

“O povo como sujeito é também o povo como objeto, sobretudo ao considerarmos o povo e o território como realidades indissoluvelmente relacionadas. Daí a necessidade de revalorizar o dado local e revalorizar o cotidiano como categoria não apenas filosófica e sociológica, mas como uma categoria geográfica, territorial. Como fazer o que nunca foi feito, isto é, introduzir o local na política de forma menos aleatória, voluntarista ou oportunista? A verdade é que ninguém jamais deu bom-dia ou se encontrou com a sociedade total de um país, uma enteléquia que vive apenas nos livros. Na vida de todos os dias, a sociedade global vive apenas por intermédio das sociedades localmente enraizadas, interagindo com o seu próprio entorno, refazendo todos os dias essa relação e, também, sua dinâmica interna, na qual, de um modo ou de outro, todos agem sobre todos”.

Falecido em 24 de junho de 2001, Milton Santos não usou o Instagram, Facebook, Tiktok, os aplicativos de conversa instantânea, usos cotidianos da internet na palma da mão e tudo o que isso significa em termos de modo de vida e produção de subjetividade. Mas acreditamos que suas reflexões são um potente antídoto para mentes cansadas de telas e em busca de outras utopias e construções possíveis.

TEXTO

Núcleo de Educação Popular da Escola de Ativismo

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