Neoliberalismo & poder do dinheiro
Para o geógrafo baiano, o neoliberalismo é um projeto muito claro de poder do capital privado, que independe das vontades das populações, contribuição significativa para pensar os ativismos:
“A retirada do Estado do processo de regulação da economia, dada como sendo um benefício para a sociedade, está, de fato, relacionada com a possibilidade de a empresa comandar a sociedade, porque é ela que acaba comandando a vida social, com o apoio das instituições internacionais e, em certos casos, como no Brasil, também com o apoio do Estado”. O que diria Milton Santos quando, em 2021, o Congresso Nacional aprovou a autonomia do Banco Central do Brasil? Aliás, autonomia do governo eleito pela maioria do eleitorado brasileiro e, do outro lado da mesma moeda (trocadilho proposital) apresenta a face mais real da dependência do mercado financeiro.
O dinheiro, o “déspota mais tirânico”, tem lugar central em suas análises e teorias, e é compreendido de formas distintas de acordo com sua distinção geográfica:
“O dinheiro comparece na minha análise, junto com a informação, como um grande tirano ideológico. Porque afinal ele se torna, de fato, o equivalente universal. Antes de universal, em potência, era universal em relação às coisas que se vendiam. Hoje, a produção do valor antecede ao uso, o que é outra característica da globalização, o uso deixou de ser o que induz ao valor. Então, o papel do dinheiro também mudou de natureza e hoje ele é um ingrediente da produção tout court e dessa produção ideológica do mundo, e tem um papel formidável, extraordinário, no processo globalitário. O dinheiro é o déspota mais tirânico”.
“O dinheiro de uma pequena cidade na Amazônia não é o dinheiro paulistano. Aqui nós temos quantos derivativos? São Paulo tem dezenas de tipos de dinheiro, e em muitos lugares só há, mesmo, o dinheiro-dinheiro, quer dizer, aquele dinheiro que é dinheiro moeda. Impõe-se esse tipo de análise sobre a distinção geográfica do dinheiro, para conhecer melhor, por exemplo, como as diversas modalidades de dinheiro entram no tecido de cada grupo social, dentro da sociedade territorializada. Isso tem que ser feito e será feito quando o homem passar a ser central na preocupação dos políticos e da política e não apenas o dinheiro…”
Ideologia, teoria & utopia
Milton Santos via a ideologia capitalista impregnada nas mercadorias produzidas por ele como nunca visto antes, assim como há ideologia na própria caracterização dos territórios:
“A minha impressão é que o mundo de hoje produziu algo extraordinário, esses objetos que já nascem carregados de ideologia. Outra coisa a assinalar é que as próprias situações são ideologia, quer dizer, dão-se como ideologia: ‘o bairro perigoso’, a ‘favela assassina’, o ‘bairro residencial’. O discurso da chamada realidade já é ideológico”.
Assim como as soluções oferecidas pelo neoliberalismo que produz o sujeito consumidor de mercadorias: o shopping center, o condomínio fechado, o pacote turístico, as formações enlatadas, os aeroportos e as farmácias cada vez mais parecidas com os shoppings.
Para ele, a boa teoria não prescinde de uma boa utopia, e via como um obstáculo para construirmos uma utopia viável em nosso tempo a tomada de pontos de vistas europeus e estadunidenses:
“Toda teoria é, pois, embrião de uma utopia. Quando se exclui a utopia, nós nos empobrecemos imediatamente. O próprio ofício de teorizar pressupõe uma utopia. As épocas que subestimam a utopia são épocas de empobrecimento intelectual, ético e estético”.
“A utopia deve ser construída a partir das possibilidades, a partir do que já existe como germe e, por isso, se apresenta como algo factível. Acho que é isso que vivemos hoje. Mas há um obstáculo que é nosso modo de pensar, europeu, ocidental. O problema é que pretendemos pensar tudo a partir de uma epistemologia europeia, e agora, norte-americana. Então, ficamos prisioneiros de modelos exógenos e também pessimistas, o que é a marca do Ocidente. A ruptura com esse modo de pensar me parece necessária e urgente”.
“E nessa vontade de mudança, que inclui a utopia. ‘Nada é impossível’. ‘É proibido proibir’. E hoje somos ridicularizados quando pretendemos ser utópicos. Mas isso está ligado à globalização. Temos que tentar romper com esse círculo terrível para restaurar a utopia, que afinal pode ser científica, como uma crise de alguma forma prevista”.
O local como ponto focal
Por fim, gostaríamos de compartilhar a posição de Milton Santos sobre o povo e sobre a importância do dado local em detrimento do global:
“O povo como sujeito é também o povo como objeto, sobretudo ao considerarmos o povo e o território como realidades indissoluvelmente relacionadas. Daí a necessidade de revalorizar o dado local e revalorizar o cotidiano como categoria não apenas filosófica e sociológica, mas como uma categoria geográfica, territorial. Como fazer o que nunca foi feito, isto é, introduzir o local na política de forma menos aleatória, voluntarista ou oportunista? A verdade é que ninguém jamais deu bom-dia ou se encontrou com a sociedade total de um país, uma enteléquia que vive apenas nos livros. Na vida de todos os dias, a sociedade global vive apenas por intermédio das sociedades localmente enraizadas, interagindo com o seu próprio entorno, refazendo todos os dias essa relação e, também, sua dinâmica interna, na qual, de um modo ou de outro, todos agem sobre todos”.
Falecido em 24 de junho de 2001, Milton Santos não usou o Instagram, Facebook, Tiktok, os aplicativos de conversa instantânea, usos cotidianos da internet na palma da mão e tudo o que isso significa em termos de modo de vida e produção de subjetividade. Mas acreditamos que suas reflexões são um potente antídoto para mentes cansadas de telas e em busca de outras utopias e construções possíveis.