Aliança dos Povos pelo Clima lança manifestação pelo financiamento para os povos que preservam a floresta.
Fazer parte da natureza é também compreender que conceitos como eternidade e imutabilidade têm muito menos sentido do que pensar em alteridades, transformações. O desejo e a vaidade não só de se perpetuar, mas de acreditar que até mesmo a morte pode ser superada é a marca de uma sociedade que, ao fim, tenta se mostrar superior aos demais seres – humanos e não humanos – e caminha a passos largos para um colapso.
A compreensão de que as transformações não são apenas parte da natureza, mas também algo harmonioso e desejável pode ser uma boa imagem para pensar sobre um importante ciclo que se iniciou em setembro, na Aldeia Mupá, Terra Indígena Capoto/Jarina, do povo Yudjá/Juruna, no Mato Grosso, com o surgimento de uma nova Aliança dos Povos, um movimento histórico que agora renova seus quadros, articulações e sonhos.
Com a presença do Cacique Raoni Metuktire, liderança histórica do movimento indígena brasileiro, o evento marcou uma passagem de tocha para jovens lideranças da floresta, que agora buscam fazer jus à Aliança, movimento histórico dos anos 80, fundado por Chico Mendes, o próprio Raoni, entre outras pessoas, que conquistou vitórias importantes, como a criação das reservas extrativistas (RESEX) no Brasil. Uma mudança agora é que, se antes o nome da articulação terminava citando a floresta, agora ela se chama Aliança dos Povos pelo Clima.
“Eu vejo que já estou ficando cansado, não tenho mais aquele fôlego para dar continuidade. Por isso, preciso que alguém faça isso para mim, que alguém dê continuidade nessa luta. Assim, quando eu partir desse mundo, vocês vão estar protegidos também. Eu sou um dos únicos que defendem não apenas o bem-viver do meu povo, mas de todos”, afirmou Raoni.
O cacique também fez questão de lembrar da importância da palavra aliança quando se tratam dos enfrentamentos necessários dos povos da floresta:
“Os brancos querem a todo custo nos derrubar, acabar com a gente. E quando eu vou confrontar essas pessoas, muitas vezes eu sinto falta de pessoas me acompanhando. Por isso, unir todos os nossos parceiros, nossos aliados. Vocês, essa geração nova, precisam manter esses brancos que são nossos aliados, vocês precisam manter essa aliança forte com eles, porque eles estão com a gente. Precisam unir essa força contra outros brancos que querem acabar com a gente. Por isso a importância dessa aliança”.
As articulações que levaram a essa nova etapa da Aliança começaram em 2024, quando um encontro do qual o próprio Raoni fez parte aconteceu em Belém, na RCOY, a Conferência Climática Regional de Juventudes Latinoamericanas. Dali as comunidades começaram a construção dessa nova campanha, que foi batizada por meio de sonhos. Entre as muitas pessoas que estavam juntas acampadas na reserva indígena, uma imagem começou a aparecer em diversos sonhos, a imagem de uma cobra. O animal, sagrado para diferentes povos, também se faz verbo agora para a nova Aliança:
Esse é o principal lema da campanha da Aliança dos Povos pelo Clima. E essa cobrança dos povos já mira na COP 30, em Belém. Num espaço em que as negociações ficam centradas em figuras de alto escalão de governos e nos lobbys de empresas, a Aliança tem como objetivo pressionar os negociadores pela garantia da autonomia territorial e reparação histórica através de mecanismos efetivos de financiamento climático. No lugar da antiga tutela, que coloca as comunidades tradicionais e originárias relegadas à subalternidade, sem tomar decisões sobre as políticas públicas e o alocamento de recursos, elas exigem agora serem responsáveis pelas decisões, com gestão e execução dos fundos.
Uma das porta-vozes desse novo momento é Angélica Mendes. Neta da liderança extrativista e membro do Comitê Chico Mendes, ela afirma que o objetivo na COP é estar em todos os espaços, como a Cúpula dos Povos e as zonas oficiais, levando essa mensagem. Há uma dívida histórica e ela tem que ser paga agora.
“Os povos indígenas, as comunidades precisam de ajuda para defender seus territórios e a natureza. E essa ajuda precisa vir em forma de recurso, em financiamento, para que a gente consiga dar continuidade aos nossos projetos, porque a gente sabe que a maioria do financiamento não chega nos territórios. E muitas vezes até pelo próprio governo que acaba não dando autonomia aos povos”, explicou a ativista.
Um exemplo de como é importante a chegada direta dos recursos aos territórios é o trabalho dos extrativistas nas reservas. Na relação e cuidado direto com a natureza, essas comunidades necessitam de acesso a projetos e fontes de recursos que permitam que o fruto de seus trabalhos chegue aos consumidores. O mesmo vale para comunidades ribeirinhas e indígenas, que precisam ter a liberdade assegurada, mas também incentivo para suas práticas tradicionais de manejo, caça e coleta.
“A gente tem a criação das reservas extrativistas, mas para que as pessoas permaneçam lá, fazendo esse papel tão importante de defesa da floresta, a gente precisa de condições maiores. A aliança surge dessa união entre jovens indígenas, extrativistas, quilombolas, beiradeiros, pescadores artesanais e todos com esse objetivo comum. Embora diferentes culturas, diferentes identidades, a gente tá aí buscando a defesa dos territórios”, ressalta Angélica.
Os desafios dos povos brasileiros nessa luta por condições dignas não é, infelizmente, um traço exclusivo do país, conforme lembrou Andrea Ixchíu, liderança maya da Guatemala, que faz parte da rede “Sul x Sul”, iniciativa do Instituto Procomum. A COP, novamente, é a oportunidade de encontro desses povos e comunidades, que podem trocar não apenas sobre os problemas que enfrentam, mas também soluções e inspirações, como a que ela afirma ter encontrado com Raoni:
“Sou de uma aliança de povos da Mesoamérica, onde nos reunimos para contar outras histórias e principalmente para honrar pessoas como o senhor, que nos ensinaram que o futuro é ancestral. Seguimos seu exemplo, seguimos o seu legado. E estamos aqui porque vamos seguir lutando por nossas terras, juntos como povos”.
Para Val Munduruku, jovem ativista indígena paraense que também integra a Aliança, o chamado do “vovô Raoni” como ela e outros carinhosamente chamam o ancião, é também a oportunidade de convocar outros jovens na luta pelo clima durante a COP, como ela fez questão de ressaltar, falando diretamente a Raoni no encontro da Aliança em setembro:
“A gente está feliz de estar aqui como juventude, relançando essa Aliança dos Povos pelo Clima. A continuidade que está sendo traçada ano a ano. Agora, assim como o senhor fez esse chamado pra nós, eu quero chamar a juventude para a defesa dos nossos territórios, rios e identidades”.
Ativista Vala Munduruku (Fonte:https://www.muvuqueiravalmunduruku.nossas.org.br/)
Em entrevista à Revista Teoria e Debate, da Fundação Perseu Abramo, em 1989, Ailton Krenak, um dos fundadores da Aliança dos Povos a definia assim: “A aliança dos povos da floresta é uma iniciativa da UNI (União das Nações Indígenas) e do Conselho Nacional dos Seringueiros, que inclui as populações ribeirinhas e comunidades de colonos. A coordenação da aliança dos povos da floresta é constituída por representantes indígenas, seringueiros e ribeirinhos. É um conselho de representantes. Nós temos pontos em que andamos juntos, mas cada uma das nossas populações tem a sua identidade própria”.
Formalizada em 1987, a aliança foi um ator essencial na garantia de demarcação de terras indígenas, assim como na criação da política e da primeira reserva extrativista do país, a Resex Chico Mendes, em 1990, dois anos após o assassinto do líder seringueiro em Xapuri, no Acre.
TEXTO
publicado em
TEMAS
Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.
Material de aprendizagem, reflexões, iniciativas, resistências. Um conteúdo exclusivo e analítico sobre o cenário, os desafios e as ferramentas para seguir na luta.