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“Temos a chave da mudança”: jovem precursora do movimento de cotas para trans no RJ fala sobre trajetória no ativismo

No Dia da Visibilidade Trans, conheça as lutas e a trajetória de Zuri, ativista do movimento trans e negro que luta contra o racismo, transfobia e cisheteronormatividade.

O que leva uma pessoa a dedicar sua vida a uma causa? Para a ativista Zuri Moura, o bem-viver de pessoas LGBTQIAPN+, em especial de pessoas trans e travestis, foi a razão. 

Sonhadora e firme nas palavras, Zuri luta contra a transfobia e o racismo e tem como missão colaborar na construção de um lugar confortável e justo para todos os gêneros, raças e identidades. Por isso afirma que a coletividade deve exigir garantias e direitos sociais e que toda a população pode ajudar a mudar a realidade atual. “É preciso que a sociedade se comprometa em trair o pacto da sua cisgeneridade para avançar em direitos sociais a população trans e travesti”.

A trajetória da jovem da periferia do Rio de Janeiro começa muito cedo, quando, entre a infância e a adolescência percebeu que a opressão a privava de viver de forma livre e plena. A situação despertou em Zuri a necessidade de romper barreiras do conservadorismo e a olhar na direção da sociedade em que sonhava.

Ao ingressar na Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2021 para cursar Serviço Social, Zuri percebeu que o espaço não havia sido pensado para educar corpos trans e negros. Por isso, idealizou e fundou o primeiro coletivo de pessoas trans da UFF como um mecanismo de sobrevivência a toda violência transfóbica. Foi uma das protagonista na luta pela política de cotas para pessoas trans no RJ e a UFF se torna 1ª universidade federal do Rio a criar cotas para trans.

Ela também é militante do movimento negro, articuladora política da Articulação de Políticas Indígenas e Quilombolas (APIQ), assessora de Equidade e Inclusão na Pró-reitoria de Assuntos Estudantis,pesquisadora na questão étnico-racial, gênero e sexualidade, equidade e inclusão, diretora executiva da Dandaras Assessoria em Direitos Humanos, membra do Perifa Connection e princesa da Casa de Ewà na cena ballroom brasileira.

Aos 24 anos, Zuri é força, mas também é poesia. Fala sobre beleza, cultura, amores… E foi pensando na sua trajetória, nas lutas do passado, desafios do presente e na expectativa para o futuro que nós, da Escola de Ativismo, a convidamos para uma conversa no Dia da Visibilidade Trans. Inspire-se na caminhada de Zuri e se junte na construção de transformações significativas para pessoas trans e travestis. 

Escola de Ativismo: Quem é a Zuri?

Zuri Moura: Responder “quem é Zuri” pra mim é pensar em quem eu posso ser dentro de todas as minhas potencialidades, Zuri é filha, é irmã, é neta, é mãe. Zuri é a junção de toda a ancestralidade que me cerca e me formou enquanto sujeito. Desde nova fui moldada e criada a fim de suprir as expectativas da cisheteronormatividade, sempre falhei. E por entender o meu erro descobri quem é a Zuri. Ser uma jovem travesti negra viva no Brasil e advinda das periferias do Rio de Janeiro, traz a ideia de pensar em todas as formas de transcender o imaginário do sadismo racista e patriarcal.

"A minha trajetória começa no grito entalado na garganta de uma vida, desde nova me incomodei com o sistema de poder que era colocado as mulheres da minha família"

Quando e como começou o seu ativismo?

A minha trajetória começa no grito entalado na garganta de uma vida, desde nova me incomodei com o sistema de poder que era colocado as mulheres da minha família, e as violências que vivenciei dentro de casa fez despertar a inconformidade de uma nova sociedade. Sempre influenciada a investir na educação enquanto uma alternativa sistêmica, diziam meus avós e minha mãe “podem roubar tudo de você menos a sua inteligência”. E assim acreditei. 

Fui uma criança LGBTI+, mas somente na adolescência tive a oportunidade de me aproximar de debates sociais, climáticos e alinhar a força da comunicação popular enquanto uma ferramenta de mudança para a periferia e populações marginalizadas. Antes de vivenciar o marco da minha militância, eu tive que lutar muito e correr bastante para ingressar na universidade (2021), local onde vivenciei o peso da solidão de ser uma travesti negra naquele espaço, assim, amadureci a consciência de que aqueles muros não foram feitos para educar corpos como o meu, sendo assim busquei a transgressão, idealizei e fundei o primeiro coletivo de pessoas trans da UFF [Rede Transvesti UFF], sendo um mecanismo de sobrevivência a toda violência transfóbica e ferramenta de mudança daquele cenário por meio de um aquilombamento de identidades transvestigêneres universitárias. 

Esse foi o pontapé inicial, porque eu sabia que havia muito trabalho a ser feito dentro daquela instituição, o movimento estudantil precisava transcentrar as suas ideias, assim, dirigi junto ao coletivo uma cadeira específica dentro do Diretório Central dos Estudantes uma pasta específica para debater sobre as nossas pautas e demandas. Nós conseguimos, e fui eu a primeira diretora travesti do DCE da UFF, na gestão “Pra Virar o Jogo”. 

Dentro da minha gestão alimentei o sonho do movimento social em transformar as paredes das universidades por meio da política de ação afirmativa para pessoas trans e travestis, tornando a UFF pioneira nesse debate dentro do estado do Rio de Janeiro. Nesse caminho de luta dentro da universidade eu trilhei o caminho de transcentrar as pontas e enegrecer os centros de debate de toda a universidade. Assumi essa liderança foi e é uma tarefa muito árdua, mas enquanto houver fôlego de vida, haverá resistência.

Você participou de uma luta pela implementação de cotas universitárias para pessoas trans. Você pode contar para gente um pouco mais sobre esse processo? E também sobre o por que isso é tão importante?

Desde a partida da minha organização do movimento trans universitário a fim de ampliar direitos dentro daquele espaço, nós pudemos notar que de fato éramos muito poucas, afirmados em dados de 0,03% segundo a ANTRA, mas sabíamos que o sonho de adentrar os muros da universidade era um desejo que perpassa muitas identidades. Assim construímos a emergência de debate acerca da política de cotas trans da universidade. No início do coletivo não tínhamos muita legitimidade, mas durante a efervescência do movimento estudantil e em forte articulação com as bases institucionais nós conseguimos romper algumas barreiras do conservadorismo, levando as nossas demandas de maneira focalizada e central para com a reitoria da universidade. Assim, assumimos um compromisso junto à instituição em construir a política de maneira pioneira em todo estado do Rio de Janeiro. 

Percorridos Grupos de Trabalho, Grupos de Discussão e incansáveis mobilizações de base em todos os campis da UFF, nós decretamos a latência da questão enquanto algo “cis”têmico da sociedade, sendo necessário a criação de uma Comissão Permanente Transvestigênere que dialogasse e acolhesse as demandas da população trans e travesti universitária. Estivemos enquanto movimento estudantil e movimento social extremamente organizades a fazer surgir a transgressão dos muros da universidade, sob o lema: “Aldear, Aquilombar e TRANSformar a UFF”. 

Nenhum direito social surge da benevolência do estado, houve muita violência institucional e muita resistência, mas por pressão social e do movimento trans universitário organizado tivemos o júbilo de glória em aprovar a reserva de vagas em 2% em todos os cursos de graduação e pós-graduação em todos os cursos e campus da Universidade Federal Fluminense. Esse foi um marco muito importante para a nossa comunidade porque delimita o fim da construção de uma ciência e educação sem a contribuição e colaboração das nossas potencialidades, a partir de 2025 teremos pessoas trans e travestis disputando o academicismo branco e construindo novas epistemologias de saberes. Esse foi um passo inicial de devolver aquilo que nos foi roubado pela colonialidade, ainda temos muitos desafios pela frente mas seguiremos adiante reflorestando as mentes ociosas e afirmando que jamais se irá construir um Brasil e uma sociedade sem nossos corpos e identidades.

"A beleza é uma construção diária, porque sabemos que o conceito de belo não chega a corpos negros, indígenas e quilombolas"

Quais os principais desafios e batalhas que o movimento trans e o movimento LGBTQIAPN+ enfrentam hoje em dia?

Ainda nos dias de hoje construímos rotas de fuga da sobrevivência, sendo as esquinas de prostituição uma realidade latente a nossa população, em cerca de 90% [Dossiê de Violências Antra], mas precisamos entender que esse caminho é alocado dentro da realidade material da falta de acessos e oportunidades. A prostituição social dos nossos corpos é inerente a nossa existência, a nossa humanidade é colocada em segundo plano de análise, nosso corpo é um produto, mera mercadoria. Quando nos levantamos de maneira coletiva para pedir garantias e direitos sociais é para que nossa identidades e narrativas sejam consideradas dentro do projeto de cidadania, pois queremos acessar a saúde universal e igualitária fornecida pelo Sistema Único de Saúde com enfoque aos cuidados necessários da população trans e travesti. Queremos acessar as escolas e universidades e queremos maiores oportunidades de trabalho. A nossa luta é diária e circunscreve os 365 dias do ano, eu quero que enxerguem os nossos corpos todos os dias e não somente em datas comerciais de visibilidade a nossas identidades.

Vamos falar sobre beleza? Como a sua relação com a beleza e a estética tem impactado sua jornada? Você considera essa conexão com a autoestima importante para falar sobre identidade e liberdade?

A beleza é uma construção diária, porque sabemos que o conceito de belo não chega a corpos negros, indígenas e quilombolas, principalmente pra pessoas trans e travestis. Mas quando giramos o nosso referencial para quem somos e quem podemos ser, com uma representação acessível a nossa realidade, a construção de beleza se torna uma possibilidade. 

Eu sou integrante da comunidade ballroom, onde sou princesa da Casa de Ewá, e desde a nossa estreia como coletivo negro no documentário Segura Essa Pose, o nosso grito é para enaltecer a beleza negra, trazendo referências e alusões a cultura afrobrasileira, pra que não mais o conceito de beleza branca seja determinado sobre a nossa pele, nossos fenótipos e nossa ancestralidade. 

Me enxergar enquanto um corpo belo, bonito e desejado só foi uma realidade quando adentrei a cultura ballroom, local onde fui permitida a florescer e frutificar. Hoje enxergo que a beleza está para além de ter um cabelo liso ou crespo, nariz fino ou largo, pele clara ou retinta, a real beleza é você sustentar a realidade de ser um corpo dissidente todos os dias nessa sociedade.

Quais mudanças são necessárias na sociedade para que haja inclusão e respeito às pessoas trans?

São muitos desafios postos à comunidade LGBTI+ e principalmente a comunidade trans e travesti, mas ainda hoje o que mais carecemos é básico: humanidade. Somos ainda hoje o país que mais mata, extermina, violenta e segrega direitos a esse grupo social. 

Para que possamos construir mudanças significativas para essa população é preciso que a sociedade se comprometa em trair o pacto da sua cisgeneridade para avançar em direitos sociais a população trans e travesti. 

Precisamos pensar de maneira urgente o cenário histórico de violência contra esse grupo.  Nós não somos representadas, ouvidas e quiçá temos nossas vozes ampliadas. Ainda somos categorizadas enquanto subumanas, somos pesquisadas mas não consideradas enquanto agentes de pesquisa. Nós, juventude trans e travesti, fomos ensinadas pelas nossas matriarcas o valor da luta e hoje estamos organizadas e temos a chave dessa mudança social, cabe a sociedade aceitar o mundo onde pessoas trans e travestis poderão viver com maior dignidade.

 

Sabendo que você é inspiração para tantas pessoas, qual mensagem você deixa neste dia da visibilidade trans?

Pensar nessa mensagem me rememora muitas vivências, mas acredito que uma mensagem seria: sabemos de todos os desafios colocados à nossa realidade, mas em primeiro momento tenha consciência de que família é quem te abraça, apoia e respeita sendo quem você é e quem você quiser ser. 

Se resguarde no coletivo, construa as suas famílias e seus amores. Hoje se permita sonhar novamente, não desista de amar e ser amada, de ter uma educação, de ter um trabalho, de realizar o sonho de uma viagem, nossas vidas são além de dor e sofrimento, nós podemos viver com maior dignidade. Saiba que você carrega uma tecnologia ancestral e imaterial: seu corpo. Cuide bem dele.

 

TEXTO

Leticia Queiroz

jornalista, quilombola e ativista antirracista

publicado em
24/09/2024

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