Muito mais do que escolher roupas e seus significados, pensar ativamente a moda, é questionar a indústria na qual ela se transformou

Por Fernanda Damasceno* – 17/06/2024

Se engana quem ainda associe a moda com algo supérfluo, vazio e com pouco significado. Ao longo da história, a moda tem sido uma ferramenta de representação social – coletiva ou individual – que transmite valores e símbolos que refletem visualmente o estado em que a pessoa ou a sociedade se encontra naquele momento.

Com isso, todo o processo de criar, confeccionar e vestir uma roupa acabam por ser atos sociopolíticos e, portanto, devem ser questionados e pensados de acordo com o contexto em que nos encontramos. 

Isso porque a moda evoluiu junto com a sociedade, proporcionando episódios marcantes que mostram que vestir não está nem um pouco distante de militar – ao contrário. 

Não à toa, após as eleições de 2018, quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil e escolheu como um de seus símbolos a camisa verde e amarela da seleção de futebol para exaltar o “nacionalismo” e o “orgulho” brasileiro, usar essa camisa, desde então quem usar essa camisa seja ou não com a intenção de se posicionar politicamente, inevitavelmente poderá ser confundido com um dos seguidores do ex-presidente, mesmo anos depois do ocorrido. Ainda bem que tanto a Madonna quanto à Parada do Orgulho LGBTQIAP+ de São Paulo estão se esforçando para disputar essa peça.

Mesmo assim, muito mais do que escolher roupas e seus significados, pensar ativamente a moda, é questionar a indústria na qual ela se transformou.

Isso porque, estima-se que a indústria da moda seja responsável por cerca de 10% das emissões globais de dióxido de carbono (CO2), de acordo com estatísticas de um relatório Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).

A produção de tecidos, como o algodão, demanda grandes volumes de água e libera produtos químicos tóxicos durante o processo de tingimento, poluindo rios e oceanos. Além disso, a busca por matérias-primas, como a viscose, contribui para o desmatamento de florestas, diminuindo a biodiversidade e intensificando as mudanças climáticas.

Em entrevista para a Escola de Ativismo, a educadora social, ativista e coordenadora de mobilização da Fashion Revolution Marina de Luca, falou um pouco sobre o assunto.

A moda como uma indústria poluente

Resíduos textêis se acumulam em rio l Foto: Greenpeace/Reprodução

A Fashion Revolution se apresenta como “o maior movimento de ativismo da moda do mundo”, e atua através da comunicação, educação, colaboração, mobilização e participação para uma nova consciência a respeito da moda.

“O Fashion Revolution surgiu em 2013, a partir da revolta de um grupo de profissionais da moda”, contou Marina. Para ela, não há separação entre a importância política da moda na sociedade e os questionamentos em como a indústria se encontra atualmente.

“Gostamos de reforçar que a moda não é só a passarela, mas sim a roupa que todas as pessoas usam, dessa forma, todas as pessoas estão envolvidas em um elo da cadeia de produção, consumo e venda” respondeu a ativista.

Atualmente um dos maiores desafios na discussão é combater o fast fashion – modelo de negócio que incentiva o consumo em excesso, tendências que sempre se renovam e ofertas quase intermináveis de roupas a preços baixos são algumas das características da fast fashion, além da produção vestuário em grandes quantidades em pouco tempo, o que traz consequências sérias para o meio ambiente.

Além do problema

Algumas alternativas a isso são os brechós, que reutilizam peças descartadas por outras pessoas, alongando a vida daquele produto e evitando desperdício. Além disso, há também o incentivo ao consumo de pequenos produtores, já que esses geralmente emitem bem menos poluentes do que as grandes lojas.

“Desejamos que a partir da nossa atuação, somada a atuação de outros coletivos, grupos organizados e sociedade civil, possamos de fato fazer a diferença na forma que a moda é feita, usada, descartada e pensada hoje em dia” contou Marina sobre a atuação do movimento Fashion Revolution.

Para além desse exemplo, trouxemos seis momentos em que a moda se mostrou política e nos fez refletir sobre determinado assunto ou sobre o momento em que vivemos.

 

Panteras Negras: o poder do povo também no vestuário

Membros do Partido dos Panteras Negras protestam em frente a um tribunal de Nova York, em 11 de abril de 1969. l Foto: David Fenton

Durante o movimento pelos direitos civis norte-americanos nos anos 60, os Panteras Negras ganharam notoriedade por sua atitude direta e seu modo de vestir: óculos de sol, calças, botas e jaquetas de couro pretas e uma boina preta. 

Além das roupas, o cabelo natural foi muito difundido pelo movimento, como forma também de resistir à imposição racista de esconder ou alisar cabelos crespos. Junto ao black power, sempre havia um pente garfo, instrumento fundamental para cuidar de cabelos crespos, da mesma forma que a escova é usada por quem tem fios lisos ou ondulados.

Dançarinas da cantora Beyoncé durante ensaio l Foto: Instagram/Reprodução

Até hoje o estilo dos Panteras Negras ainda é referência no movimento negro, mas não só: na apresentação da cantora Beyoncé no intervalo do Super Bowl em 2016 ela usou um figurino inspirado pelo cantor Michael Jackson, enquanto suas bailarinas usaram o uniforme do partido antirracista Panteras Negras.

Para a população negra, a moda nunca foi dissociada do ativismo, uma vez que o modo de se vestir pode muitas vezes salvar vidas, evitando ser perseguido ou agredido verbal ou fisicamente. Não à toa muitas pessoas negras, especialmente homens, têm a lembrança de ser ensinados desde criança a sempre estar bem vestidos e arrumados, na esperança de que a roupa certa possa evitar algum episódio de violência por conta da cor de pele.

 

Nunca mais uma moda sem indígenas!

Thelma Assis e Dandara Queiroz foram modelos do desfile de Maurício Duarte. l Foto: Reprodução/Instagram @mauricioduartebrand

Maurício Duarte é um renomado estilista indígena brasileiro que alcançou reconhecimento internacional por suas criações inovadoras que celebram a herança cultural dos povos indígenas do Brasil.

Duarte é conhecido por sua habilidade em combinar tecidos naturais, como algodão, linho e fibras vegetais, com técnicas de tingimento natural e bordados elaborados, resultando em peças que transmitem uma sensação de autenticidade e artesanato.

O trabalho do estilista é uma expressão de sua identidade indígena e um testemunho de sua dedicação à sustentabilidade e à inovação na moda. Suas roupas não adornam os corpos, elas contam histórias de luta, resistência, culturas e representatividade dos povos indígenas, que até hoje lutam contra o genocídio e por mais equidade.

Sua participação no São Paulo Fashion Week de 2023 representou um marco significativo, pois proporcionou uma plataforma que tradicionalmente era fechada somente a certos padrões, mas que vem cada vez mais se movimentando para incluir novas narrativas da moda.

A moda plus size: rompendo padrões e incluindo pessoas diversas

Sinara Assunção para Liana D_Áfrika moda. l Foto: Matheus Clima

Padrões de beleza e questões que antes não eram discutidas ganham holofotes quando a sociedade começa a questionar a falta de representatividade e de opções no mundo da moda para diferentes tamanhos e diferentes corpos. Se antes a magreza exagerada era vista como padrão a ser alcançado, atualmente o culto a dietas milagrosas é questionado e isso se reflete também na moda.

Sinara Assunção, comunicadora, produtora cultural, DJ e modelo de Belém, no Pará, falou conosco um pouco sobre o assunto: “falar sobre a falta de oportunidades para essas pessoas de diferentes corpos é também falar sobre falta de política, falta de letramento, enfim, é falar de um lugar que por muito tempo não nos pertenceu mas que existem pessoas hoje que tem mudado essa realidade”, opina.

Para a modelo, utilizar a própria moda como forma de expressão é demarcar seu lugar enquanto mulher negra, bissexual e gorda “ainda é uma barreira a ser rompida e vem sendo rompida a passos muito lentos, mas acredito que já houveram muitos avanços e é interessante que a gente olhe para eles”.

Moda e no Movimento LGBTQIA+: aliados históricos

Lírio Moraes: “Eu acho que só fui ter uma relação consciente com a moda depois da minha transição” l Foto: Instagram de Lírio Moraes/@hbrpedro

“A moda é mais do que só seguir tendências, só o consumo pelo consumo. Ela também é uma ferramenta de construção de identidade, de ativismo” nos contou Lírio Moraes, jornalista e empreendedor de moda que se identifica como uma pessoa não binária.

Lírio começou a trabalhar com moda em 2019, quando abriu um brechó junto com outros amigos “na época eu via apenas como um meio de desapegar de algumas peças que eu não usava mais e conseguir uma grana extra com isso. Mas depois da minha transição, que ocorreu de fato em 2020, eu passei a enxergar essa questão de forma mais política.”

E ele não está sozinho. A moda sempre foi uma grande aliada do movimento LGBTQIA+, servindo muitas vezes de vitrine para o rompimento que essa comunidade propõe trazer para a sociedade.

Isso também tem sido visto pelas empresas, já que algumas marcas têm lançado coleções específicas ou colaborações em apoio à comunidade LGBTQIA+, com parte dos lucros muitas vezes revertida para apoiar as causas da comunidade.

Lírio contou que durante boa parte da vida não teve uma boa relação com a moda, se sentido “desconfortável” com as roupas que vestia “eu acho que só fui ter uma relação consciente com a moda depois da minha transição.”

Em outras palavras, ele conta que “enquanto pessoa não binária a moda foi e ainda é a ferramenta principal na construção da minha identidade”. Durante a entrevista, o jornalista reforçou que a construção de sua autoestima vem se dando juntamente com a construção de seu estilo de se vestir, além da consciência de uma moda mais sustentável, pauta que lhe atravessa por conta de seu brechó: “a política é essencial nesses processos, para que a gente tenha uma moda pensada para corpos e estilos diversos, mais acessível e para estimular o consumo consciente”.

Vestir-se pode ser mais do que apenas uma decisão estética ou prática – pode ser um meio de expressar identidade, valores e posicionamento político. Pode ser a maneira com que pessoas consigam fazer as pazes com a própria identidade, ou também questionar a própria moda em si e desafiar padrões estéticos impostos por ela. Vestir-se sempre é político, e pode também ser um ato de dizermos ao mundo a mudança que queremos.

*Fernanda Damasceno é jornalista, produtora de conteúdo e de audiovisual. Entusiasta de artes visuais e de moda, adora escrever sobre meio ambiente e Amazônia.

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