Povo Marubo, do Vale do Javari, no Amazonas, se defende de comentários discriminatórios e desrespeitosos após viralização de manchetes falsas sobre uso indevido da internet.

Por Letícia Queiroz, da Escola de Ativismo – 12/06/2024

Instalação de uma antena Starlink na aldeia Ararimba, no Amapá l Foto: Conexão Povos da Floresta/Reprodução

Nos últimos 21 meses, a Starlink, a provedora de internet de baixa-orbitagem do bilionário Elon Musk, chegou na Amazônia trazendo internet de alta velocidade por um preço acessível onde antes era impossível. Já são mais de 66 mil assinaturas na região amazônica, muitas em povos de recente contato ou em regiões remotas. As transformações causadas pela chegada do serviço são profundas e ainda estão sendo entendidas por povos indígenas e tradicionais.

Mas a forma discriminatória e exótica de enxergar os povos indígenas associada à disseminação de fake news ganhou força nos últimos dias desde que viralizou a notícia falsa sobre o impacto negativo do uso da internet no Vale do Javari, no Amazonas. 

A notícia original, veiculada no The New York Times tinha como título “The Internet’s Final Frontier: Remote Amazon Tribes”, na tradução para o português “A fronteira final da Internet: tribos remotas da Amazônia”. O uso do termo “tribos” já é questionado por povos originários tanto no Brasil, quanto mundo afora, preferindo “aldeias”, “territórios indígenas” ou “povos”. O termo usado pelo jornal estadunidense inclusive ecoou nos veículos brasileiros.

Após a publicação da matéria, o texto foi distorcido por sites brasileiros que afirmavam que os jovens Marubos estariam viciados em pornografia e em jogos online violentos, deixando de lado suas tradições. A comunidade e o jornalista Jack Nicas, que escreveu a matéria internacional, negam e desmentem as manchetes. O jornalista pediu: “Por favor, parem de compartilhar essa mentira”

“Dezenas de sites agregaram nossa matéria sob uma manchete que diz falsamente que o povo Marubo rapidamente tornou-se viciado em pornografia. Muitos desses sites usaram fotos do povo Marubo. Fizeram vídeos, memes. A coisa está feia. Os Marubo não são viciados em pornografia e a matéria nunca disse que eles eram”, afirmou o jornalista Jack Nicas no X, antigo Twitter. 

O povo indígena também nega. A Rede de Estudantes Indígenas do Vale do Javari divulgou uma nota de repúdio às declarações.

“Essas afirmações são não apenas infundadas, mas também desrespeitosas e discriminatórias. Elas perpetuam estereótipos negativos sobre os povos indígenas e ignoram a complexidade das questões que envolvem a introdução de novas tecnologias em suas comunidades. O acesso à internet, tem o potencial de proporcionar inúmeras vantagens, como o fortalecimento da educação, a melhoria dos serviços de saúde, a promoção da cultura indígena e a facilitação da comunicação entre aldeias distantes uma da outra, bem como se comunicar com reuniões importantes que acontecem fora da Terra Indígena Vale do Javari. Repudiamos a postura paternalista e preconceituosa implícita nessas declarações, que desconsidera a autonomia dos jovens indígenas do Vale do Javari, e sua capacidade de gerir o uso das tecnologias de acordo com suas necessidades e valores culturais”, afirma a nota.  

Matéria do New York Times foi usado como combustível para racismo anti-indígena l Foto: Google/Reprodução

As lideranças reconhecem a importância da introdução da internet e da conectividade. A Rede de Estudantes Indígenas do Vale do Javari condena qualquer tentativa de desviar o foco das verdadeiras questões que afetam os povos do Vale do Javari, como a falta de políticas públicas eficazes, a invasão de territórios por atividades ilegais e a precariedade dos serviços básicos de saúde e educação. “Estas são as questões que devem ser tratadas com urgência e seriedade pelas autoridades competentes, bem como veículos de informações”.

Mesmo desmentindo, portais e páginas brasileiras de grande repercussão, incluindo os de alcance nacional mantiveram as publicações, mostrando a falta de interesse com a verdade e com o bem-estar e saúde mental dos povos indígenas. Os textos chamam atenção pela forma exótica e estereotipada como os indígenas ainda são vistos. 

O jovem Denilson Pixi Kata Matis é indígena do povo Matis, na região do Vale do Javari. Ele informou que antes da chegada da internet, as comunidades se comunicavam através de rádio, que era ligado em hora em hora.

“Às vezes o rádio não tem uma boa comunicação. Não dá para ouvir direito. Então, era muito ruim essa questão da comunicação entre eles. Como a internet possibilita fácil acesso de informações e envio de mensagens rápidas, os líderes quiseram instalar. Então a chegada de Starlink nas aldeias foi boa, está sendo boa, na verdade. Porque melhorou a comunicação entre os familiares, da comunidade para a cidade, dos municípios de perto, até as cidades distantes. E também melhorou a questão da informação, da saúde, o contato com a SESAI [Secretaria de Saúde Indígena]. É mais fácil agora trocar conversa e falar: ‘está acontecendo isso’”.

O jovem falou que também é possível saber, sem interferências, sobre o que está acontecendo em outros países. “Não precisa outra pessoa do município comunicar sobre o que está ocorrendo ao redor do mundo. É possível saber de tudo morando na aldeia”.

A disseminação da notícia falsa nos últimos dias trouxe consequências ao povo, que tenta se defender das acusações. Após a onda de fake news, as famílias começaram a ser tratadas de forma desrespeitosa. “As informações falsas foram vazadas e colocadas fora de contexto. O New York Times, fala uma coisa e a mídia brasileira fala outra. Não existe vício ou dependência de internet. Têm a hora para ligar e a hora exata de desligar, tudo controlado pelos líderes. A comunidade vê tudo isso de uma forma maldosa. Estão com aquela sensação de querer falar para o mundo que isso não é verdade. Estão querendo sujar o nome do Vale, sujar o nome do povo”, disse Pixi Kata.

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