Por Vinicius Tamamoto

Grupo de pessoas asiáticas protestam na rua segurando placas com dizeres como "stop asian hate [parem de odiar asiáticos]

Incomodados com a representação estereotipada de pessoas asiáticas, descendentes se juntaram para formar coletivos | Foto: Kareem Hayes na Unsplash 

Eu devia ter uns cinco anos. Uma vizinha se aproximou e perguntou o que eu queria ser quando crescesse. Não lembro minha resposta, mas ela sentenciou: “Vai abrir um restaurante de sushi”. Deve ter sido um dos primeiros momentos em que percebi que havia algo diferente em mim. Na escola, desde a primeira série, o momento da chamada era angustiante. Torcia para que a professora só chamasse os alunos pelo primeiro nome, já que seria zuado pelo sobrenome. Tamagoshi, xing ling, jaspion e japa eram alguns dos apelidos que me faziam ter vergonha de minhas origens, ainda que meu pai, de ascendência okinawana, tivesse se afastado (talvez pelos mesmos motivos) de toda a cultura asiática que experimentou na infância. 

Em casa, meus hábitos eram de uma criança 100% brasileira de uma cidade da periferia de São Paulo. Não havia ao meu redor qualquer outra pessoa de “olhos puxados”. Por isso, era impossível andar pelas ruas com a minha mãe sem que as pessoas destacassem minhas características físicas. Alguns puxavam os olhos, outros falavam qualquer coisa ininteligível na tentativa de imitar a língua japonesa. Sem saber o que fazer, eu só sorria. A reiterada lembrança do outro de que eu era uma espécie de estrangeiro afetou para sempre a maneira de me relacionar com o mundo. A timidez cresceu e virou um monstro. Fui tentando apagar qualquer resquício em minha personalidade que pudesse me associar à Ásia em uma tentativa inconsciente de embranquecimento. Os problemas foram aumentando conforme a adolescência evoluía. Cada vez mais introspectivo, não conseguia me relacionar com colegas da escola e passei o ensino médio como o garoto esquisito, calado e sempre sozinho nos cantos, onde ninguém pudesse me ver. Acrescente a esse contexto a nuance de me perceber gay. Se já não via asiáticos por aí, imagine asiáticos gays. Logo passei a deparar, em sites de relacionamento, com o racismo escancarado do “não curto negros nem orientais” (sim, isso era muito comum em meados dos anos 2000).  

Foi só lá por 2015, com a disseminação de grupos na internet que falam sobre a questão asiática no Brasil, que comecei a ter certa consciência de que não estava sozinho em meu “não lugar”. Incomodados com a representação estereotipada de pessoas asiáticas, descendentes se juntaram para formar coletivos. Alguns dos primeiros foram Perigo Amarelo, Asiáticos pela Diversidade, Outra Coluna e Yo Ban Boo. Foi revelador entender que minhas subjetividades individuais encontravam eco em um grupo bem maior de pessoas. Para tentar sintetizar as questões de descendentes do leste asiático por aqui, o pesquisador Porowiak propôs recentemente o uso do termo “amarelitude”.  Em seu texto inaugural, explica que a intenção é pensar sobre uma vivência paradoxal: a de sermos racialmente discriminados e, ao mesmo tempo, racialmente privilegiados. 

O perigo amarelo e a minoria modelo

Existem duas ideias que ajudam a entender essa ambivalência. Uma delas é a de ‘perigo amarelo’, uma ideologia surgida no século XIX e utilizada desde então por líderes ocidentais em momentos de temor da ascensão econômica de algum país da Ásia. “Há um marco fundante dessa ideia que acontece a partir da encomenda pelo Kaiser Guilherme II, da Alemanha, de uma tela intitulada ‘Perigo Amarelo’, que fazia uma alegoria do leste asiático como uma ameaça à civilização e aos valores ocidentais”, explica Lais Miwa Higa, doutoranda em Antropologia Social. A outra é a de ‘minoria modelo’, um conjunto de estereótipos positivados de asiáticos e seus descendentes que nos enxerga como uma população trabalhadora, estudiosa, capaz de alcançar o sucesso financeiro e se integrar bem à sociedade. A noção de minoria modelo é contraditória.

Ao passar na faculdade de jornalismo, uma colega de sala me perguntou em que posição da lista eu havia ficado. Quando soube que estava longe dos primeiros lugares, disparou sem rodeio: “Nossa, um japonês burro.” Fiquei perplexo.

Nos Estados Unidos, estudos indicam que crianças com ascendência asiática sofrem com problemas de autoestima justamente por carregar estereótipos positivados. Ao mesmo tempo, constroem-se certos privilégios em torno de pessoas amarelas: não ser parado pela polícia e não ter a vida colocada em risco como as populações negras e indígenas são alguns deles. Nesse contexto, o ativismo asiático luta também para que pessoas amarelas no Brasil não sirvam como escada ao racismo anti-negro, já que a positivação fez com que muitos de nós comprássemos o discurso meritocrático do individualismo neoliberal. A oposição do sucesso asiático no Brasil seria, nessa ideia, a população negra escravizada, que não teria conseguido alcançar tal façanha. 

 Para Lais, os mitos do perigo amarelo e da minoria modelo são criações usadas como instrumento de manutenção de sistemas hierárquicos, de desigualdade, colonialidade e opressão. “Há uma dialética entre as duas coisas que faz com que o perigo amarelo possa ficar apagado, silenciado durante muito tempo, apesar de não desaparecer”, analisa. Ou seja, o olhar positivado dos brancos sobre os asiáticos amarelos se sobrepõe ao risco que eles possam causar, pelo menos até que um fator de crise volte a desencadear o medo.

Durante a pandemia da Covid-19, por exemplo, ataques racistas e xenófobos não foram raros ao redor do mundo e o termo “vírus chinês” foi amplamente disseminado. Essa teia de construções produz atravessamentos subjetivos importantes em cada indivíduo que se reconhece asiático no Brasil. “A partir do entendimento de contextos históricos, da produção científica, artística e ativista, a gente vai conseguindo enxergar nossas histórias”, reflete a pesquisadora. Só assim é possível rever memórias e construir novas narrativas que quebrem o pacto colonial. Por nós e por todos os racializados – ou não-brancos.

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