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A língua é um campo de disputa: ativismos e opressões da linguagem

A forma como falamos e até mesmo a língua que nos é ensinada é fruto de uma disputa histórica. E em que precisamos estar atentos para que muitas vozes não caiam no esquecimento?

Arte sobre a foto de Marina Ginestà i Coloma, franco-catalã membro da Juventude Socialista Unificada. Foto tirada no último piso do Hotel Colón Barcelona em 21 de julho de 1936, durante a Guerra Civil Espanhola. Créditos: Juan Guzmán (Hans Gutmann).

Arte sobre foto de Marina Ginestà i Coloma, franco-catalã membro da Juventude Socialista Unificada. Foto tirada em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola. Créditos: Juan Guzmán

Dois jovens peixes estão nadando e cruzam com um peixe mais velho nadando em direção contrária, que os cumprimenta com a cabeça e diz: ‘Bom dia, rapazes. Como está a água para aqueles lados?’, no que eles respondem ‘Está boa’. Os dois jovens peixes nadam por algum tempo, e num dado momento um olha para o outro e pergunta: ‘O que diabos é água?’.

No nosso cotidiano, as dinâmicas sociais relacionadas à língua são uma realidade que parece tão óbvia que muitas vezes é como a água para esses peixes, e não paramos para nos questionar, nos surpreender com ela.

Certamente, vocês já se depararam com diferentes posicionamentos em relação à língua em alguns temas específicos, que mexem mais com os ânimos das pessoas. A discussão sobre formas não binárias de gênero é um exemplo que vem à mente rapidamente, e de fato ela mobiliza toda uma visão de mundo e de categorização das expressões de gênero. Isso porque existe uma relação entre a forma que falamos e como conceitualizamos o mundo.

A teoria que afirma isso ficou conhecida como relativismo linguístico, ou Hipótese de Sapir-Whorf: a hipótese de que línguas diferentes estruturam de formas diferentes nossas formas de pensar. No geral, o que costuma ser chamado de relativismo linguístico é mais um conjunto de teses diversas que afirmam que a língua que falamos molda a maneira como pensamos ou enxergamos a realidade. Mas o Whorf vai no limite, levando a um determinismo linguístico, ou seja, as línguas determinariam modos de perceber e entender a realidade, e as pessoas veriam o mundo que a sua língua permite ver. Em última instância, há uma incomensurabilidade entre os sistemas linguísticos diferentes, até mesmo a impossibilidade de tradução entre as línguas. Não é bem por aí. O que acontece é que língua e mundo se co-constituem, num fluxo contínuo de interação entre as pessoas e o ambiente (social, histórico, político, cultural) que as cerca.

Como resultado, temos dinâmicas sociais e lutas relacionadas à língua que são muito sutis e que passam despercebidas – como a água dos peixes, apenas naturalizamos certa forma de pensar como se fossem verdades absolutas.

As águas profundas da linguagem

Línguas são formas de vida, estão inexoravelmente conectadas, constituindo e sendo constituídas por quem somos no mundo. Todo o nosso repertório linguístico é formado por nossas experiências, o que inclui o lugar em que nascemos, quem nos cria, com quem convivemos, as crenças e ideologias de quem nos cerca, a que grupo social pertencemos. Mesmo quando aprendemos línguas de outros povos, levamos conosco os conhecimentos que temos da ou das línguas com as quais crescemos. E é por isso que respeitar a forma de falar de uma pessoa é respeitar a sua própria existência.

Nem sempre isso é perceptível, o que tem relação com a própria natureza das línguas, que são eventos efêmeros. Elas existem quando são usadas por seus falantes. É como se fossem um vírus e nós, falantes, os hospedeiros sem os quais elas não sobrevivem. Porém, nesse caso, não conseguimos encontrá-las com um microscópio em um corpo físico: sempre que usamos a língua (qualquer que seja) o que achamos que é a nossa língua faz uma aparição fugaz e imediatamente depois desaparece, indo para lugar nenhum. Ainda que existam milhares de dicionários, gramáticas, gravações, etc., eles não são a língua em si.

 

Pense em uma pessoa querida que já morreu. Uma fotografia pode até registrar um instante da vida dela, mas não é a pessoa. A língua também. Ela só existe na interação, seus registros são como fotografias de um instante de uso linguístico.

No entanto, não é isso que nos ensinam desde crianças. A ideologia hegemônica hoje tem suas origens na Era Moderna, que remonta ao século 17. Há muito a se discutir sobre a relação entre a ciência iluminista e o conceito de língua vigente, mas vamos nos ater à consolidação dos Estados nacionais europeus, no século XIX. Nesse período começa a se falar de ‘soberania dos povos’, são modeladas identidades nacionais, e a língua é usada como um elemento central nesse processo.

Para isso, teve início um processo de padronização artificial das línguas para que se chegasse a um idioma nacional que deveria ser adotado em todo o território. Inclusive, nessa visão o multilinguismo é visto como um problema a ser combatido pelo Estado, já que todo cidadão, para ser considerado como tal, deveria falar da mesma forma. Mas como você já deve desconfiar, as variações entre as formas de falar entre uma região e outra eram difusas, era muito difícil distinguir fronteiras entre elas. Por conta disso, assumiu-se que era preciso ‘purificar’ as línguas, moldando um exemplar nacional, um ideal de língua. A esse ideal podemos chamar de norma padrão.

Uma língua é sempre heterogênea, mutante, flexível; o processo de padronização tira a língua do seu ambiente vivo, seu cotidiano, e a transforma em uma instituição estanque. Por conta disso, as línguas oficiais (norma padrão) sempre são construções abstratas que não têm um equivalente direto na fala. Segundo Marcos Bagno, linguista famoso no Brasil, essa abordagem hipostasia a língua. Uma hipóstase “se caracteriza pela atribuição de existência concreta e objetiva (existência substancial) a uma realidade fictícia, abstrata ou meramente restrita ao caráter incorpóreo do pensamento humano” (2011). Tanto que, no senso comum, é frequente falar de uma língua como um sujeito, como se fosse uma entidade dotada de vontade e poder de ação, ignorando-se que quem faz as coisas são os falantes, os seres humanos que falam as línguas. Aliás, as opiniões que temos sobre línguas e dialetos na verdade são opiniões sobre seus falantes. É mais fácil dizer “Que sotaque feio!” do que “Eu não gosto desse pessoal”.

Vamos então pensar em algumas consequências nas dinâmicas sociais fruto desse tratamento dado à língua. Ou, em outras palavras, quais são as águas que nos cercam e não notamos.

A ideologia da norma

Poderia apostar que todo mundo já ouviu alguém dizendo que “não sabe português”, isso no Brasil e em… português! O que acontece é que há uma associação – equivocada – de língua com a norma padrão, como se fossem sinônimos. Mas, como acabamos de ver, a realidade não é nem nunca foi essa. 

O que chamamos de norma padrão é uma forma idealizada, um grande acordo (com Supremo, com tudo) feito para homogeneizar a nossa escrita. É diferente da norma culta, que é o nome que se dá à maneira como as classes sociais mais escolarizadas falam, e não, elas não falam a norma padrão. Na verdade, ninguém fala, porque ela é realmente uma idealização, uma abstração, não existe falante nativo de norma padrão. 

Lembremos quem é que historicamente legislou em nossa sociedade. No momento de definir o que entra ou não nos manuais de gramática que prescrevem como se deve ou não falar/escrever, são as pessoas nas posições de poder econômico e político que participam desse processo, refletindo o que parece certo para elas e excluindo a população que não faz parte desse grupo. 

Então, quando alguém diz que é “ruim de português”, que “não sabe falar direito”, isso significa que ela não manuseia adequadamente a norma padrão. E só isso, pois essa pessoa sabe sim as estruturas da língua portuguesa, tanto que está se comunicando com a comunidade de falantes de português.

Daí derivam uma série de preconceitos, sendo a associação entre não dominar o padrão com pouca inteligência um dos mais explícitos, e tem sido amplamente discutido sob o termo “preconceito linguístico”. Essa ideologia tem reflexos dos âmbitos mais cotidianos até esferas públicas que vêm sendo mais debatidas, entre elas: quem tem direito à escrita? Só quem domina a norma do poder? 

Essa água é tão invisível que, do lado de quem luta pela emancipação dos povos e fim das desigualdades, encontramos muito da ideologia da norma. Isso acontece quando se propõe que comunidades abandonem sua forma de falar para se beneficiarem social e economicamente, como se o único caminho fosse as classes oprimidas aceitarem o código daqueles que as oprimem. 

“A opressão linguística […] não surge no vácuo e não constitui um problema por si só – ela vem da mesma sociedade de classes com suas desigualdades. A única maneira de as desigualdades linguísticas desaparecem não é aprendendo a língua dos que estão no topo, mas sim através da eliminação política das desigualdades sociais.” (Puh e Popović, 2023) 

Lélia Gonzalez, antropóloga negra brasileira, nos fornece como ferramenta de luta os conceitos de pretuguês e povo amefricano

 Lélia Gonzalez, antropóloga negra brasileira, elaborou os conceitos de pretuguês e povo amefricano / Crédito: Reprodução

Nesse sentido, Lélia Gonzalez, antropóloga negra brasileira, nos fornece como ferramenta de luta os conceitos de pretuguês e povo amefricano. Mais do que uma categoria geográfica, que situa a América Latina, a amefricanidade é também uma categoria linguística. Um português afrobrasileiro, “o pretoguês nada mais é que a marca de africanização do português falado no Brasil” (influência que vai muito além do léxico, permeando a sintaxe, morfologia e fonologia também). 

“Os preconceitos que o português brasileiro sofre das elites brancas, dos programas de ensinar português na TV, do assessoramento dos jornais impressos é de fato uma via do preconceito racial no país, em seu caráter linguístico”. Lélia Gonzalez

No século XIX, as línguas indígenas já não incomodavam tanto, e o principal personagem a incomodar a elite letrada brasileira (e recebendo grande desprezo) era o português popular em geral, o “falar atravessado dos africanos”. Isso vinha junto com ideias racistas de pureza vs. impureza/mistura. Há um desprezo por toda a variedade e heterogeneidade linguística do país, em especial quanto à variação social, o português popular. Constrói-se o nosso imaginário não só de um país monolíngue, como também um país linguisticamente uniforme. O que nos leva ao próximo ponto.

Existem cerca de 7 mil línguas no mundo, e isso é possível graças ao multilinguismo. A ideia de que um país equivale a um povo e uma língua (e uma cultura) também é uma construção humana, mais especificamente do Iluminismo pra cá, com seus romantismos e consolidação dos Estados nacionais como os conhecemos hoje. Para que a língua fosse usada como elemento para unificar populações em torno de um projeto de nação, foi preciso negar e perseguir a existência de outras línguas no mesmo território.

A ideologia do monolinguismo

Essa relação entre língua e nação fica bem evidente na história da França, que com a Revolução Francesa perseguiu as outras línguas faladas naquele território e adotou como oficial o que se falava em Paris e arredores – o francês. Lá também há outras línguas, entre elas o bretão, o occitano e o basco. A lógica é a de que todos são iguais enquanto cidadãos, e para ser um cidadão francês deve-se falar francês.

No país vizinho logo ao sul, a história foi ainda mais violenta. O Estado espanhol (ou Reino de Espanha, dado que é uma monarquia) é composto por diversas comunidades autônomas, e algumas delas têm línguas próprias. Hoje são reconhecidas o galego, na Galícia, o basco, no País Basco, e o catalão, na Catalunha, que compartilham a co-oficialidade com o castelhano nessas regiões. Mas nem sempre foi assim.

Após a guerra civil espanhola, que durou de 1936 a 1939, todas as línguas que não fossem o espanhol/castelhano foram proibidas em âmbitos oficiais, como o ensino, a comunicação pública, os ritos religiosos e a imprensa. Quem as usasse nesses contextos era perseguido, e, ainda que em espaços não-oficiais, havia uma forte carga pejorativa sobre seus falantes. Essa proibição tinha o intuito de formar um Estado espanhol centralizado e homogêneo. Nesse contexto, falar galego, catalão, basco ou asturiano era associado a uma postura antirregime, contra a ditadura de Francisco Franco, “antipatriota”. Recomendo o filme “A língua das mariposas” (dir. José Luís Cuerdas, 1999), baseado no conto “A lingua das bolboretas”, de Manuel Rivas, que retrata a perseguição político-linguística na Galícia durante esse período. Durante esse período, a luta contra o fascismo espanhol andava lado a lado com a luta pelos direitos linguísticos dos povos. Foi só com a morte de Franco, e o fim da ditadura, que essas línguas foram permitidas e reconhecidas na Constituição Espanhola. 

Mulheres das Brigadas Antifascistas na Espanha.

Mulheres das Brigadas Antifascistas na Espanha.

Somos muitas línguas

Existe um mito de um Brasil monolíngue, de que, apesar da grande diversidade cultural e geográfica, somos todos unidos por uma única língua, o português. Entretanto, a diversidade linguística no Brasil é imensa! Vivemos em um dos países com o maior número de línguas do mundo.

Quando os europeus chegaram ao que depois passou a se chamar Brasil, estima-se que havia uma população de seis a nove milhões de pessoas, que falavam perto de 1.200 línguas, pertencentes a diferentes famílias e troncos linguísticos (conjunto de famílias). Ou seja, o Brasil já era um território multilíngue muito antes da colonização, com povos falantes de línguas muito diversas e um intenso intercâmbio linguístico.

O fato de hoje predominar o pensamento de Brasil como país monolíngue é uma herança daquele pensamento europeu que vimos acima, pois o modelo que associa um país a um único povo e a uma única cultura foi imposto às terras colonizadas.

Número de línguas por país

NÚMERO DE LÍNGUAS POR PAÍS

De acordo com o Ethnologue, uma publicação que reúne dados sobre a diversidade linguística do mundo, hoje o Brasil ocupa a 10ª posição de país com o maior número de línguas faladas. De acordo com o Censo 2010, contamos hoje com 274 línguas e dialetos originários, além das dezenas de línguas africanas que chegaram com as pessoas que foram sequestradas para escravização e dos processos de imigração de variados continentes para cá. Apesar disso, só português e Libras têm reconhecimento oficial em nível nacional. 

A construção do nosso panorama linguístico atual remonta às reformas pombalinas. Sebastião José de Caravalho, o Marquês de Pombal, foi uma figura importante no reino português na segunda metade do século 18. Ele atuou na “melhoria da gestão colonial”, munido de ideias modernizadoras com base nas ideias que circulavam na Europa naquele momento. Visando centralizar a administração colonial e neutralizar a ação das ordens religiosas que atuavam de maneira autônoma, sem o controle da metrópole, Pombal expulsou os jesuítas em 1759. Foi ele também que mudou a capital da colônia para o Rio de Janeiro. Mas o grande impacto para a nossa diversidade linguística foi a proibição, em 1758, do tupi e das línguas gerais, como a Língua Geral Amazônica (o nheengatu) e a Língua Geral Paulista, que por sinal eram amplamente usadas pelos jesuítas. A partir desse momento, o português foi instituído como única língua do Brasil.

Dando um salto, hoje a luta pela preservação das línguas indígenas nos permite articular muitas esferas sociais, não só a da linguagem. Por que uma pessoa para de falar uma língua, ou escolhe não ensinar sua língua para os filhos senão por uma questão de sobrevivência numa dada sociedade? Uma língua continua a ser falada enquanto a pessoa pode sobreviver e ter seus direitos garantidos nela, e isso vai de atendimento de saúde e educação formal a prestígio social. No caso dos povos originários, isso envolve garantir a eles a possibilidade de continuar existindo de acordo com a forma como estruturam suas sociedades. Logo, é também uma luta por terra, por direito à vida nos moldes daquela cultura. E esse é um tema que deságua na questão ambiental.

Ao abrir o mapa das terras indígenas demarcadas no Brasil e das áreas cuja vegetação histórica é mais preservada, percebe-se na hora a relação entre elas. Ao pensar na diversidade linguística do mundo, vê-se que está intrinsecamente ligada com a diversidade de povos. Preservar essas línguas significa respeitar vidas indígenas, que é uma das formas mais eficientes de não explodir o mundo,  dada a conexão do tema com a preservação de territórios, meio ambiente e modos de vida. Falar de línguas pode ser uma ferramenta para pensar no mundo, ou nos mundos, que queremos construir. Além disso, reconhecer a diversidade linguística do mundo é um dos passos fundamentais para o respeito à diversidade no geral.

“Um dos mitos a se quebrar é o do Brasil como país monolíngue. Ele perturba nossa capacidade de nos percebermos como país multilíngue e multicultural, mas, acima de tudo, embaraça nossa capacidade de reconhecer e compreender a heterogeneidade do português que aqui se fala: sua história, sua polarização, suas reconfigurações contemporâneas.”  Carlos Alberto Faraco, no livro História sociopolítica da língua portuguesa.

Ativismos linguísticos

Surdos aplaudem em Libras a aprovação do PLS nº 131/96. Fonte: Roosewelt Pinheiro / Agência Senado. Jornal do Senado, Brasília.

Surdos aplaudem em Libras a aprovação do PLS nº 131/96. Fonte: Roosewelt Pinheiro / Agência Senado. Jornal do Senado, Brasília.

Também a comunidade surda reivindica seus direitos ao lutar por uma educação bilíngue, com o português escrito e a Libras. Esta, aliás, não é uma versão gestualizada do português. A Libras é uma língua natural, isto é, que emerge naturalmente da interação entre os seres humanos. 

Em setembro de 1994, houve no Brasil um evento muito importante de visibilização da comunidade surda, a marcha Surdos Venceremos, reivindicando o reconhecimento oficial da sua língua, o direito à educação em Libras e o provimento de intérpretes em espaços públicos. Em 2002, foi aprovada a Lei 10.436, que reconhece a Libras como meio legal de comunicação da comunidade surda, o que trouxe reflexos na estruturação educacional, com a implementação do ensino de Libras nas formações em Pedagogia, Fonoaudiologia e das licenciaturas.

A Libras faz parte da identidade da comunidade surda: até existem novos subsídios tecnológicos que permitem a muitas pessoas passar a escutar, com aparelhos específicos. Mas é muito frequente os surdos não quererem usar esses aparelhos por uma questão identitária, por reivindicar a defesa da cultura da comunidade surda. 

Essa pauta mobilizou a própria definição de deficiência, que se baseava exclusivamente em questões físicas; chamada de modelo médico, esse modelo considera certas características físicas das pessoas como uma anomalia a ser tratada individualmente. A partir dos anos 1960, surge o modelo social de deficiência, que considera a deficiência uma soma das características das pessoas com a falta de espaços e estruturas que acolham essas características. Ou seja, nesse modelo social, a deficiência não é estática, mas sim relacional, da pessoa com a sociedade, e portanto uma responsabilidade coletiva.

O socioleto das travestis

Erika Hilton e o pajubá

E quando um grupo social cria uma língua como meio de se proteger? É mais ou menos essa a origem do pajubá ou bajubá, uma forma de falar com a função de língua de segurança das travestis brasileiras, bastante importante especialmente durante a Ditadura Militar. Ainda que também se aproprie de línguas indígenas, como o tupi, e línguas europeias, o bajubá emerge do contato do português principalmente com línguas africanas, como kimbundo e iorubá.

Ele pode ser pensado como uma criptolíngua ou língua secreta, ou seja, a linguagem de um grupo frequentemente usada para excluir ou confundir pessoas de fora do grupo. Dificilmente essas linguagens secretas são completas porque os falantes costumam ter alguma língua pública em comum, na qual elas são baseadas. Criptolínguas são desenvolvidas por essas sociedades como um meio de impedir que pessoas de fora compreendam sua comunicação, e como uma maneira de estabelecer uma subcultura que atenda às necessidades de sua estrutura social alternativa.

A comunidade LGBTQIA+ foi diretamente alvo de perseguição dos militares durante a ditadura, principalmente pessoas trans e travestis. O grande marco dessa violência foi a Operação Tarântula, conduzida em São Paulo-SP pelo delegado José Wilson Richetti, que consistia em “rondões” pela cidade para deter essas pessoas, sendo recorrentes torturas, espancamentos e extorsão contra aquelas que fossem detidas.

A imprensa também fazia sua parte, como o jornal Estado de S. Paulo “alertando” sobre “perigo” de pessoas travestis:

Página do Estado de S. Paulo "alertando" sobre "perigo" de pessoas travestis. Foto: Reprodução.

Hoje em dia, o uso do bajubá é mais corrente entre outras pessoas da sigla LGBTQIA+ e até quem não está no “vale”, o que pode parecer que não pode mais ser uma língua de segurança. Ledo engano… O bajubá se transforma diariamente, o que se conhece fora do seu grupo social de origem sempre será algo mais datado, e tenha certeza de que, se uma travesti não quiser que você a entenda, você não a entenderá.

Para ir encerrando, reproduzo aqui o Manifesto de Girona sobre direitos linguísticos:

  • A diversidade linguística é um patrimônio da humanidade que deve ser valorizado e protegido.
  •  
  • O respeito por todas as línguas e culturas é fundamental no processo de construção e manutenção do diálogo e da paz no mundo.
  •  
  • Cada pessoa aprende a falar no seio de uma comunidade que lhe dá a vida, a língua, a cultura e a identidade.
  •  
  • As diversas línguas e as diversas formas de falar não são apenas instrumentos de comunicação; são também o ambiente no qual os humanos crescem e as culturas são construídas.
  •  
  • Toda comunidade linguística tem o direito de que sua língua seja utilizada como oficial em seu território.
  •  
  • A educação escolar deve contribuir para a promoção da língua falada
    pela comunidade linguística do território.
  •  
  • O conhecimento generalizado de diferentes línguas pelos cidadãos é um objetivo desejável, pois favorece a empatia e a abertura intelectual, ao mesmo tempo que contribui para um conhecimento mais profundo da própria língua.
  •  
  • A tradução de textos — particularmente dos grandes textos das diferentes culturas — representa um elemento muito importante no necessário processo de aumentar o conhecimento e o respeito entre os humanos.
  •  
  • Os meios de comunicação são alto-falantes privilegiados no que diz respeito a tornar efetiva a diversidade linguística e a prestigiá-la com competência e rigor.
  •  
  • O direito de usar e proteger a própria língua deve ser reconhecido pelas Nações Unidas como um dos direitos humanos fundamentais.

Desenvolvido pelo Comitê de Traduções e Direitos Linguísticos da PEN International, que promove um fórum para que escritores possam se encontrar e discutir, é também uma voz que se levanta em nome de escritores que foram silenciados em seus próprios países. 

A história das línguas é a história de seus falantes, de modo que são perpassadas pelas estruturas das sociedades que formam (e pelas quais são formadas). Poderíamos passar horas levantando casos de reivindicações de mudanças em formas e terminologias. Temos visto movimentos antirracistas denunciando o preconceito que carregam expressões, como denegrir. No entanto, não podemos, por exemplo, nos limitar a usar pronomes de gênero neutro sem questionar a construção social de gênero da sociedade em que vivemos. Temos que extrapolar a língua e entender que essas reivindicações não podem se encerrar em si mesmas, elas são antes estopins de discussões, como se jogássemos tinta na água transparente que nos cerca e pudéssemos ver do que ela é composta. 

Bibliografia:

BAGNO, Marcos. (2011) O que é uma língua? Imaginário, ciência e hipóstase. Em: LAGARES, X. C. e BAGNO, M. & LAGARES, X. (orgs.). Políticas da norma e conflitos linguísticos. São Paulo: Parábola, 2011, pp. 355-387.

BRITO, F. B. O movimento social surdo e a campanha pela oficialização da língua brasileira de sinais. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-03122013-133156/publico/FABIO_BEZERRA_DE_BRITO.pdf 

FARACO, C. A. (2016) História sociopolítica da língua portuguesa. São Paulo: Parábola Editorial.

FARIAS, C. (2020). A posição da língua. Disponível em: https://medium.com/babelpodcast/a-posi%C3%A7%C3%A3o-da-l%C3%ADngua-c7f35b62bd0a 

FELIPE, P. H.; D’ANGELIS, W. R. (2019) Línguas indígenas e diversidade linguística no Brasil. Em: Roseta V2. N1. Disponível em: https://www.roseta.org.br/2019/02/21/linguas-indigenas-e-diversidade-linguistica-no-brasil/ 

PUH, M.; POPOVIĆ, I. (2023) Língua e nacionalismo. Cadernos de Letras UFF, Niterói, v. 34, n. 66, p. 335-347.

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