Escola de Ativismo

“Eu sou feliz é na comunidade” – um olhar sobre a luta pelo bem viver coletivo nos territórios

A felicidade nas comunidades se manifesta como uma forma de resistência coletiva mesmo diante dos desafios diários. O cuidado, a união, a fé e a força são os pilares que sustentam essa alegria compartilhada como ato político.

Montagem com quatro fotografias feitas em comunidades tradicionais mostram cocos babaçu, tambores, casa feita de barro perto das árvores e bandeira com a mensagem “Cuidar da terra, alimentar o povo”. – Fotos: Letícia Queiroz

“Eu sou feliz é na comunidade, na comunidade eu sou feliz”, diz uma canção muito conhecida e cantada nos encontros em comunidades tradicionais… Assim foi também ao fim do mês de junho, quando ela foi entoada com muita emoção na Comunidade Alegria, em Timbiras, no interior do Maranhão, na região dos Cocais. O território que carrega o sentimento de felicidade no nome tem a alegria da união, de estar em contato com a natureza, de dormir com o céu estrelado e acordar com o canto dos passarinhos.

No Maranhão a região dos cocais abrange 17 municípios. Caracterizada por uma formação vegetal dominada por palmeiras como o babaçu, a paisagem é encantadora. As palmeiras, em diferentes tamanhos, formam o que de longe parece com elevações que se movimentam com a força dos ventos. 

Na região é possível perceber a alegria das comunidades, mesmo diante dos desafios diários. É que a felicidade se manifesta como uma forma de resistência. É sobre sorrir sem esquecer de lutar e lutar de forma coletiva para a construção do bem viver.  O que pode explicar isso é justamente a coletividade. A alegria é coletiva porque a luta também é. Nas comunidades, ninguém luta por si só. As aspirações em um território tradicional não são individuais e o que se busca são vitórias coletivas.  Sendo assim, as alegrias também são de um grupo.

Um trecho da música “Eu sou feliz é na comunidade” diz:

A nossa comunidade luta por libertação,
para formar uma corrente e quebrar a opressão.
Com o trabalhador unido as coisas vão melhorar.
Luta por Reforma Agrária para na terra plantar.
Tantos pobres sem a terra, sem ter casa pra morar.
Lutam pelos seus direitos para a vida melhorar.
A nossa comunidade se reúne todo dia.
A nossa comunidade se transforma em alegria”.

Comunidades tradicionais no Maranhão preservam o meio ambiente e resistem ao avanço do MATOPIBA –

Foto: Letícia Queiroz

Nas comunidades, a felicidade é construída nos saberes compartilhados, na terra cultivada, nos cantos, nas rezas, nos festejos, no reencontro com a ancestralidade. O fato de pertencer a um território tradicional, com autonomia e identidade, é uma fonte de felicidade. É saber quem se é, de onde se vem e por que se luta. A felicidade também está na partilha de alimentos, nos trabalhos em mutirões, nas celebrações, nos cuidados entre gerações. 

É lindo perceber que o cuidado com as outras pessoas é muito presente nas comunidades originárias e tradicionais. É sobre compreender que para cuidar de si é preciso cuidar das pessoas da comunidade porque elas também fazem parte de quem você é. Nos quilombos, entre os e as indígenas, nas comunidades camponesas, ribeirinhas, ciganas e tantas outras, cuidar do outro é cuidar de si mesmo e do território, da memória e da cultura de onde se vive.

O cuidado coletivo é parte do modo de viver. Esse cuidado, que fortalece o todo, também é um ato político e contribui para a alegria em forma de autoestima e autoconfiança. Com afeto e ativismo ancestral, mulheres negras dentro dos seus territórios e dos movimentos sociais consolidaram redes para fortalecer a identidade e reafirmar orgulho pela negritude.  

Alegria que brota da terra

Coco babaçu e suas palmeiras são usados de váriadas formas, seguindo os saberes e tecnologias ancestrais – Foto: Letícia Queiroz

Olhar para a chuva caindo sobre as árvores verdinhas dá uma paaaaaz! Ter a certeza de que vai saborear frutos das estações, contar com a pesca, com as roças, as criações soltas que garantem comida na mesa é alegria! A infinidade de sabores que refletem a diversidade e a riqueza da vegetação nativa são riquezas, assim como a variedade de ervas medicinais no quintal de casa.

Cuidar da natureza como tratamos nosso próprio corpo é um ato de amor e cuidado.  

Acompanhar o tamanho das pindobas – palmeiras de Babaçu em fase de crescimento – também é felicidade. Principalmente na região dos Cocais. E só de pensar em uma palmeira de babaçu e na sua serventia integral dá uma felicidade. Isso porque as árvores são tão ricas e o seu aproveitamento é uma prática sustentável que contribui para a economia local e preservação do meio ambiente. 

Nos cocais, os cocos que caem são coletados por quebradeiras de coco para extração do azeite e leite de coco – muito usados na culinária tradicional. A farinha produzida a partir do mesocarpo do coco de babaçu é remédio para imunidade. A casca do coco, quando não é transformada em artesanato, vira carvão dentro das caeiras para serem usados nos fogareiros. A palha é manuseada com cuidado e transformada em formatos mais variados possíveis de cofos, cestos, abanos, esteiras, telhados de casas… Um tronco que cai, vira adubo orgânico, o paú. É incrível como nada se perde. 

As tecnologias ancestrais e os saberes populares são riquezas e pontos fortes das comunidades. Essa felicidade pode não contagiar quem não compartilha as mesmas vivências. Mas quem vive sabe. E se alegra!

Felicidade como espiritualidade

Manifestações de fé fazem parte do cotidiano das pessoas em comunidades tradicionais – Foto: Letícia Queiroz

É muito comum o apego à fé nas comunidades tradicionais e a alegria que pulsa nesses espaços também pode ter relação com a espiritualidade. Os rituais e as festas tradicionais fortalecem a esperança em dias melhores. E isso alimenta a alegria, mesmo diante da dor. 

A espiritualidade pode ser mais do que crença. Tem relação com o sagrado, com a terra, com os ancestrais, com os encantados e com o tempo da natureza. A espiritualidade está no toque dos tambores, nos sons das rezas, nas orações silenciosas ou só no pensamento. No banho de rio que limpa o corpo e a alma. 

Para muitas pessoas, a espiritualidade oferece força, sentido e esperança. E é por isso que nos encontros que reúnem as comunidades tradicionais para tratar de determinados assuntos, sempre é esperado um momento espiritual. E geralmente acontece antes da abertura de qualquer evento, durante as místicas. Um momento de expressão de fé, de poesia, de expressão corporal, de palavras de ordem, de canto, dos símbolos, das ferramentas de trabalho.  

A mística com espiritualidade nas comunidades é também sobre o pedido de licença antes de iniciar qualquer atividade. Essa prática é comum em diversas culturas e religiões e demonstra reconhecimento da presença de forças ou entidades espirituais que habitam o espaço. 

Certa vez, na comunidade Alegria, uma liderança chamou atenção de visitantes no início de uma atividade com a presença de ativistas e movimentos sociais quando discussões importantes começaram sem um momento de espiritualidade. Isso diz muito sobre a importância da religiosidade para as comunidades. Para quem tem fé e acredita, pedir proteção é essencial. 

A canção sobre felicidade na comunidade também fala sobre fé. “Nós cantemos um bendito, depois um “pelo sinal”, uma lê o Evangelho e todos vamos comentar”. E uma das estrofes fala sobre conquistas de direitos. “Os pobres fizeram um plano, isto eles querem ganhar, lutar pelos seus direitos para a vida melhorar”. 

E dá pra melhorar e ser ainda mais feliz! Com os territórios livres de invasões e com lideranças livres de ameaças por defenderem seus territórios. Nas comunidades, queremos viver longe das cercas, da mineração, de plantações de eucalipto e do agronegócio. Distante das violações de direitos e sem nenhuma proximidade com agrotóxicos e pulverizações aéreas. Queremos viver com território titulado, ter segurança, água de qualidade, moradia digna e educação e saúde para o povo. 

Dizer que é feliz na comunidade não é sobre aceitar as coisas como elas estão. É sobre reafirmar que a alegria está dentro do território, e não fora dele. É sobre saber que não está sozinho e ter certeza que vale a pena a luta e o esperançar.

É não conhecer individualismo e rejeitar muros altos que afastam a vizinhança. É  uma alegria que resiste, que encontra beleza nos vínculos e na certeza de que há chão firme onde pisar, terra boa pra plantar e água limpa pra beber e pra banhar. 

“Cuidar da terra, alimentar o povo” estão entre as prioridades das comunidades tradicionais – Foto: Letícia Queiroz

Navegar pelas águas do rio às margens de uma comunidade tradicional também é felicidade – Foto: Letícia Queiroz

Eu sou feliz é na comunidade. Na comunidade eu sou feliz. (bis) - A nossa comunidade luta por libertação, pra formar uma corrente e quebrar a opressão. O trabalhador unido as coisas vão melhorar. Luta por Reforma Agrária para na terra plantar. Tantos pobres sem a terra, sem ter casa pra morar. Lutam pelos seus direitos para a vida melhorar. A nossa comunidade se reúne todo dia, a nossa comunidade se transforma em alegria. Nós cantemos um bendito, depois um "pelo sinal", uma lê o Evangelho e todos vamos comentar. Os pobres fizeram um plano, isto eles querem ganhar, lutar pelos seus direitos para a vida melhorar.

(Esse texto foi escrito por Letícia Queiroz, comunicadora quilombola, após o Encontro de Segurança Integral para comunidades tradicionais na região dos Cocais. O encontro aconteceu em junho de 2025 e contou com a participação de integrantes da Escola de Ativismo

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