Por Marília Parente

São inúmeros os relatos de experiências abusivas envolvendo agentes policiais; saber como se comportar em uma situação dessas é uma maneira de proteger a própria integridade física

Barreira policial feita com escudos. No chão, há uma bandeira do Brasil rasgada

É crime deixar, sem justificativa, de comunicar prisão em flagrante à autoridade judiciária no prazo legal l Foto: Ramiro Furquim/Sul 21

Ora medo e paralisia, ora revolta e raiva. Quem já foi vítima de uma abordagem policial inadequada costuma relatar que a reação à experiência é sempre uma surpresa. E muita gente conhece essa sensação: 49 milhões de brasileiros já relataram ter sido vítimas de uma abordagem abusiva. Saber se comportar em uma situação de tensão, contudo, é a melhor forma de evitar abusos no contato com os agentes. 

Militante do Movimento Negro Unificado (MNU), o professor e enfermeiro Sandro Silva aguardava um ônibus no Terminal Integrado do Barro, na Zona Oeste do Recife, quando foi abordado por uma dupla de policiais militares.

“Começaram a me perguntar o que eu estava fazendo ali e dizendo que aquele não era meu lugar. Questionei o motivo daquilo e eles me levaram para uma sala nas dependências da estação”, lembra. 

Naquela noite, Sandro foi espancado pelos policiais e por vigilantes da segurança privada do terminal. “Abriram minha mochila, jogaram todos os itens no chão e pisotearam minhas coisas, procurando por algo. Levei chutes, murros, tapas e depois fui jogado para fora da sala. Até hoje, não sei como um ser humano faz uma coisa dessas com outro”, lamenta.

Sandro conta que não conseguiu reagir à abordagem. “Para ser sincero, a gente nem pensa nisso. Eu fiquei desnorteado. Milito desde os 13 anos de idade, mas nunca achei que uma coisa dessas fosse acontecer comigo”, coloca. 

A experiência traumática alterou sua rotina e seu comportamento. “Procurei uma delegacia, fiz corpo de delito e pedi ajuda da Secretaria de Direitos Humanos, que me encaminhou para psicólogos. Apesar disso, tive que mudar o caminho para o trabalho, quase desenvolvi depressão e passei um bom tempo com pânico de pessoas fardadas”, comenta. 

Duas pessoas de costas para a câmera vestem uniforme de polícia com a indicação "police", palavra inglesa para polícia

“Uma abordagem não deve ter, de forma alguma, ameaças, xingamentos, ofensas de qualquer espécie nem tampouco qualquer tipo de agressão física”, diz Rennan Castro (OAB-PE) l Foto: AlgorithmWatch

Estado de violência

De acordo com o presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil- Seccional Pernambuco (OAB-PE), Rennan Castro, uma abordagem policial deve se basear na fundada suspeita, conforme o Supremo Tribunal Federal define um comportamento que indique que a pessoa praticou ou está prestes a praticar um crime. A ação só pode ser realizada por agentes do estado, geralmente os policiais militares.

 “Uma abordagem não deve ter, de forma alguma, ameaças, xingamentos, ofensas de qualquer espécie nem tampouco qualquer tipo de agressão física”, explica. 

Castro orienta que, em caso de revista abusiva, a população evite acionar corregedoria de polícia sem a assistência de especialistas. 

“Melhor procurar organização da sociedade civil que tenha estrutura para acolher essas denúncias. Como práticas milicianas são infelizmente realidade no país, não é seguro apresentar denúncia à corregedoria sem a devida retaguarda de organizações com acúmulo na área de segurança pública”, explica.

O advogado ressalta que a própria OAB conta com plantões da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, que podem ser procurados pela população em caso de violações de direitos. “Basta ligar e pedir para falar com a Secretaria das comissões”, completa.

Mantenha a tranquilidade (e as mãos visíveis)

Segundo a Defensoria Pública do Estado Bahia (DP-BA), manter a tranquilidade e acatar às ordens do policial durante a abordagem é fundamental, ainda que a pessoa não tenha cometido nenhum delito ou considere que não há razão para a abordagem. Também é importante manter as mãos visíveis e evitar fazer movimentos bruscos, tocar o policial ou utilizar termos agressivos. 

“Não discuta, não insulte e também não ameace apresentar queixa contra a(o) policial. Quaisquer irregularidades ou abusos, tendo em vista a sua própria integridade física, devem ser denunciados e apurados pelos órgãos oficiais (ouvidorias, corregedorias, Ministério Público, Defensoria Pública) no momento posterior mais conveniente”, recomenda o órgão. 

Caso não esteja com os documentos de identificação em mãos, não entre em desespero. Deixar de portá-los não é crime, mas se recusar a identificar-se constitui contravenção penal. 

“Se estiver sem documentos, procure se identificar de forma clara. Se lembrar, diga o número de seu RG ou CPF ou quaisquer outros dados que auxiliem a sua identificação”, diz a DP-BA.

Por outro lado, segundo o Art. 5° da Constituição Federal, todo policial em exercício deve possuir sua identificação gravada de maneira visível na parte frontal da farda, estando impedido de utilizar meios para escondê-la. 

“Qualquer pessoa que seja abordada possui o direito de saber o motivo e o nome da(o) policial (inclusive o civil) e da(o) guarda que está realizando a abordagem ou a condução. É bom lembrar que deixar de se identificar ou se identificar falsamente ao preso na ocasião da sua prisão é crime (artigo 16 da Lei 13.869/2019 – Lei de Abuso da Autoridade)”, explica a DP-BA.

O órgão também elucida que a diversidade humana deve ser considerada durante a atividade policial. Assim, não é considerado ilegal ou discriminatório adotar medidas especiais para grupos sociais como mulheres, pessoas idosas, pessoas em situação de rua, adolescentes, entre outros. Pescadores e marisqueiras, por exemplo, não costumam portar seus documentos pessoais, em razão da atividade que exercem. 

“Também é sabido que pessoas em situação de rua, constantemente, perdem seus documentos, circunstância que não é suficiente para configurar uma situação ilícita. Estar em situação de rua não é crime e não fundamenta por si só a revista pessoal. Nenhuma pessoa deve ser levada por policiais ou ser tratada como criminosa pelo fato de estar dormindo nas ruas. O direito de ir e vir abrange também o de estar ou ficar onde quiser estar”, orienta a DP-BA.

Segundo o Art. 249 do Código de Processo Penal, a busca em mulheres só poderá ser executada por outras mulheres. Já homens e mulheres trans, frisa a Defensoria Pública, deverão ser consultados sobre a forma de tratamento mais adequada durante uma revista ou busca pessoal. 

“As pessoas trans que ainda não possuem os nomes adequados nos documentos geralmente utilizam nome social de acordo com o seu gênero, que deve ser respeitado e utilizado para se referir a elas durante todo o processo, evitando expor publicamente o nome de registro para evitar constrangimentos. Nestes casos, é importante ainda que seja assegurada a utilização de adequado pronome de tratamento”, orienta o órgão.

 

Grupo de jovens protesta na rua. Há fumaça subindo por detrás deles

Jovens revindicam punição a torturadores da ditadura l Foto: Mídia Ninja

Racismo policial

Uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) divulgada em fevereiro deste ano aponta que 63% das pessoas abordadas pela polícia na cidade do Rio de Janeiro são negras. Os locais em que elas são mais abordadas são na rua e na praia (68%), em vans ou kombis (74%), nos carros de aplicativos (72%), andando de moto (68%) e no transporte público (71%). 

Foi justamente em um ônibus, que trafegava por Olinda, em Pernambuco, que o sociólogo Adeildo Araújo sentiu na pele o racismo policial. 

“Eu estava dormindo  e acordei com um forte tapa no peito por um policial. Depois, ele foi dando ordem para eu levantar os braços e virar de costas. De todas as pessoas do ônibus, apenas eu fui abordado”, comenta. 

A ação policial causou indignação entre os demais passageiros, o que deu a Adeildo mais confiança para protestar. 

“Não aceitei a abordagem e solicitei que minha bolsa fosse revistada por outro policial, informando que essa não era a maneira de abordar um cidadão. Uma discussão começou e eles acabaram descendo do ônibus”, relata. 

Após o incidente, Adeildo chegou a registrar denúncia na corregedoria de polícia, mas nunca teve retorno.

 “Quando você é pego de surpresa não é nada fácil lidar com o racismo. Se não fosse minha formação política antirracista, esse episódio poderia ter deixado sequelas profundas em minha vida. É tão chocante que nunca esperamos que acoteça conosco”, conclui.

Para o pesquisador do CESeC e coordenador do levantamento Elemento Suspeito, Pedro Paulo da Silva, traços da cultura negra costumam ser percebidos como suspeitos pelos policiais. 

“Junto ao levantamento estatístico, também realizamos grupos focais com policiais militares. Quando perguntamos o que era um elemento suspeito, para eles, era o menino de cabelo amarelo, na régua, cheio de pintas. Então a gente vê que os policiais percebem o elemento suspeito a partir da estética favelada”, explica.

Quando a polícia comete um crime? 

Ainda que esteja exercendo sua função de controle social, o policial ou guarda municipal pode cometer crimes durante uma abordagem. Caso identifique algum dos comportamentos abaixo, não deixe de registrar a ocorrência em delegacia ou corregedoria da instituição ligada ao profissional de segurança pública:

Crime de turtura

O policial não pode ameaçar, bater ou praticar quaisquer atividades de tortura para forçar alguém a confessar um crime. Isso inclui processos de inquirição nas dependências de delegacias.

Crime de  injúria

Durante a abordagem, o policial não pode xingar o cidadão de “Ladrão”, “vagabundo”, “noia”, “moleque”, dentre outras ofensas. Tal conduta constitui crime de injúria e pode ser considerada abuso de autoridade. 

O agente do estado também não pode se referir de forma ofensiva contra familiares de pessoas suspeitas de crimes nem familiares de pessoas presas. A vítima de crime de injúria pode ingressar com ação penal e indenizatória.

Crime de injúria racial

O policial também não está autorizado a ofender alguém com base em raça, cor, etnia, religião ou origem. Neste caso, a pena pelo crime de injúria é mais grave.  

Abuso de autoridade (Lei 13.869 de 2019)

É crime deixar, sem justificativa, de comunicar prisão em flagrante à autoridade judiciária no prazo legal, bem como não comunicar, imediatamente, a prisão de um cidadão e o local em que se encontra detida a seus familiares ou pessoa por ele indicada. O policial também comete um delito se não entregar à pessoa presa, dentro de 24 horas, a nota de culpa assinada pela autoridade responsável, o motivo da prisão e os nomes das testemunhas.

O policial não pode constranger a pessoa presa ou detenta, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a exemplo de expor seu corpo ou parte dele à curiosidade pública e submetê-la a situação vexatória não prevista em lei. Constitui ainda abuso de autoridade submeter, sem consentimento, a pessoa presa a interrogatório policial durante o período de repouso noturno, salvo se capturado em flagrante delito, assim como impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada da pessoa presa com sua advogada(o).

Pessoas de diferentes sexos devem ser, necessariamente, mantidas presas em diferentes celas. Vale ressaltar que a pessoa trans deve cumprir sua detenção em espaço de confinamento condizente com a identidade de gênero com que se identifica. 

Violação domiciliar

É crime invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, o imóvel alheio e suas dependências. Para entrar na casa de alguém, o agente de segurança precisa estar munido de determinação judicial ou contar com a autorização de seus ocupantes. 

Extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento

O funcionário público pode ser preso por extravio, sonegação ou inutilização por de qualquer documento que está em seu poder em razão do seu cargo, a exemplo de RG e CNH obtidos após uma blitz. De acordo com o Art. 314 do Código Penal, o cometimento do delito pode acarretar em pena de reclusão de um a quatro anos.

Corrupção passiva

Trata-se da solicitação, recebimento ou promessa de vantagem indevida praticada pelo agente público em razão de sua função. Segundo o Art. 317 do Código Penal, a pena para o delito é de reclusão de dois a 12 anos e multa.

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