Por Romualdo Dias

Criança acompanhada de duas pessoas adultas em um lugar que parece uma escola

Foto: Prefeitura de Jundiaí via Flickr/Creative Commons 2.0

A palavra tem o poder de nos conduzir. A leitura de mundo e a escrita da existência se movem nas fronteiras do possível, pelos entremeios em que os sentidos oferecem as tramas, nos narram os dramas, em misturas de múltiplas formas! A palavra autêntica atravessa o corpo, não foge do sofrer. E neste nosso momento, a palavra necessária se encontra com o sofrer das crianças se apresentando em um plano de realidade. Temos, assim, uma tessitura mais ampla, em que os planos da necessidade, da realidade e da possibilidade, constituem a composição atenta a todas as demandas do viver. Aqui lemos, escrevemos, enquanto nos encontramos com as crianças em geral, estando elas espalhadas por todos os lados, e com a criança de cada um de nós, ainda presente em nosso peito. Cada um de nós carrega a sua criança, ela nos acompanha até o fim de nossos dias.

No dia 04 de outubro de 2022 nós começamos este estudo com o seguinte título: “Escola e família: fundamentos filosóficos e pedagógicos para os cuidados com a infância e para o fortalecimento de vínculos”. O nosso plano de trabalho pretende orientar e cultivar o mais amplo conjunto de práticas sobre os cuidados com cada criança. Iniciamos o nosso percurso colocando ênfase nesta expressão de uma vida nova oferecida para todos nós por meio das crianças. Também desejamos cooperar com o fortalecimento dos vínculos capazes de organizar e sustentar os melhores ambientes. A vida se inicia em extrema fragilidade, se desenvolve a partir da mais forte dependência, necessita de um ambiente seguro. Os vínculos e os ambientes constituem o acolhimento suficiente com ampla segurança.

O título de nosso curso expressa uma relação entre a criança, a família e a escola. A criança nasce e espera receber os melhores cuidados para garantir o seu pleno desenvolvimento. A família e a escola oferecem o acolhimento, de tal modo que, cada uma realiza funções em comum e funções diferentes, ao mesmo tempo, e de preferência de modo combinado. A família e a escola oferecem a materialidade para que os vínculos tenham um início e permanência consistente. Os cuidados e os vínculos se fortalecem nesta combinação entre os seus aspectos de estabilidade, portanto, estáticos, e os seus aspectos em permanente construção, portanto, dinâmicos.

O ponto de partida do nosso estudo é a realidade da criança e da família, como uma primeira preocupação. Estamos entendendo o tempo da criança e o espaço da família como sendo partes de uma base, pois é aí onde tudo começa. É aí onde a criança recebe o acolhimento fundamental para a sua vida poder brotar e se desenvolver. E um segundo momento voltamos a nossa atenção para a as instituições educacionais, como os centros de educação infantil, a etapa da pré-escola e o ensino fundamental. As instituições sociais dependem da construção de um bom entendimento com a família para poderem realizar as tarefas que elas têm em comum e as tarefas que elas têm em suas especificidades. Nestas duas esferas nós queremos compreender em que consiste um gesto de reparação e a que práticas de acolhimento e cuidados elas nos levam.

Nós olhamos para a situação em que as crianças e as famílias se encontram. Por meio de nosso olhar constatamos um crescente sofrimento. Ao observarmos a situação das crianças constatamos diversas formas de desamparo e encontramos as suas vidas marcadas por muita vulnerabilidade. Do lado dos pais há sofrimento, desorientações, cansaços variados, apelos por ajuda. Do lado dos educadores, há uma sobrecarga de demanda acompanhada por um elevado grau de sofrimento na medida em que eles fortalecem os mais variados modos de cumplicidade com as crianças. Um educador, sendo autêntico em sua função, não pactua com o discurso cínico quando joga para o futuro os direitos de toda uma vida, negados no presente.

Em nosso estudo queremos concentrar a nossa atenção sobre as situações de maus tratos com a criança. Existem os maus tratos visíveis nos gestos de violência, nas surras, tapas, beliscões, puxadas de orelhas, enfim, por muitas práticas de uma educação pelo castigo. Os maus tratos invisíveis aparecem nos descuidos, no desamparo, no abandono. Há maus tratos repetidos no cotidiano, que de tanto se repetirem se tornam naturalizados. Os seus efeitos mais fortes recaem na ponta mais frágil da relação entre aquele que cuida e aquele que é cuidado. As crianças sofrem mais.

Quando nós olhamos para a situação do mundo em geral nós nos perguntamos: o que vemos acontecer hoje? Nós encontramos grupos de pessoas, organizados em redes nacionais e internacionais de cooperação mútua, empenhados em orientar as famílias e os educadores sobre os modos de realizar uma educação pelo castigo. Há grupos que tentam fortalecer o convencimento de todos, com os seus argumentos, apelando para justificativas encontradas na Bíblia, apresentadas como sendo oportunas. Há canais de comunicação atuantes na rede mundial com uma ampla oferta de palestras e cursos fazendo ataques aos educadores considerados por eles como sendo perigosos para a infância. Toda a concepção de educação que se orienta pelo princípio da liberdade na organização dos processos de formação do humano é julgada como sendo perniciosa. Há experiências de implantação de uma rígida disciplina, vindas de uma cultura militar, se multiplicando em escolas de ensino fundamental e ensino médio, por todos os lados, em nosso país e no mundo.

Durante o nosso curso queremos manter esta pergunta viva para nos instigar permanentemente: quais notícias recolhemos sobre os maus tratos com a criança ou sobre os seus efeitos nos modos de sofrimento?

A ação educacional, a ser realizada pela família e pela escola, se encontra diante de fortes desafios em nosso tempo. Um primeiro desafio se refere ao fazer, está relacionado com a ação de cada um de nós, com os trabalhos práticos. Quando trazemos as práticas para o centro de nossa atenção nós convidamos a todos para fazer o exercício de deslocamento daquele lugar confortável do discurso, onde só falamos muito sobre o problema. Sugerimos nos deslocar deste lugar de conformo para chegarmos ao lugar onde podemos inventar as soluções para os sofrimentos por meio do nosso agir, individual e coletivo, em cooperação. Em cada experiência podemos fazer o esforço de substituir delicadamente aquelas práticas assentadas no medo, na repressão, no adoecimento e no enfraquecimento de todos, por meio de outros modos de agir. Estes outros modos serão assentados no exercício da liberdade, no desfrute da ternura, nas multiplicações dos melhores acolhimentos. Nós falamos em uma substituição delicada e gradativa porque acreditamos que ninguém se envolve em práticas de mudança a partir de argumentações racionais, a partir de palavras de ordem. Há algo mais fundamental situado neste lugar de adesão e de mobilização, para realizarmos alguma transformação social.

Diante do sofrimento das crianças, das famílias e dos educadores nós não encontraremos a solução ficando limitados aos nossos discursos, a nossas conversas, a nossas discussões. Queremos fazer pensar sobre o que é um

trabalho de base, isto é, a ação lá onde tudo começa. Para os tempos atuais um trabalho de base precisa de uma orientação pedagógica, de nova concepção de humanismo, de outra metodologia da ação educacional.

Os desafios para uma ação educacional a se realizar na base se apresentam com muita complexidade. Neste estudo queremos promover um entendimento e um debate sobre o tema da colonização. Quando o capitalismo nasceu, no início da sociedade industrial, ele iniciou a empresa de colonização de outros territórios, além das fronteiras da Europa, para se expandir.

Hoje vivemos em outra etapa de uma economia capitalista. Este modelo de economia já não explora mais as Américas, a Ásia ou a África. E nem pode explorar a lua ou outros planetas, ainda. Vemos então, como o sistema colonial se reinventa para garantir a expansão do capitalismo enquanto um modelo de produção e de acumulação de riquezas. O sistema colonial se torna muito criativo e inicia novas formas de colonização.

Quais são os novos territórios de colonização nos tempos atuais? O sistema colonial faz o seu amplo esforço de colonizar novos territórios: a intimidade da família, a escola, os vínculos, os sonhos e a fantasia, o corpo.

A nossa disposição para organizar uma ação educacional coletiva precisa de uma orientação e de uma animação, por causa da comlexidade destes desafios aqui apontados.

Em nosso estudo nós encontramos a fonte de nossa inspiração, para buscarmos as orientações e para encontrarmos a energia de animação em três autores:

1) Alice Miller

2) Donald Winnicott

3) Helena Antipof

Nós buscamos as nossas inspirações em dois psicanalistas e em uma educadora. Queremos fazer um esforço para darmos um tratamento de nobreza a estes autores. Promovemos os nossos encontros com eles como práticas de provocações. Não queremos fazer destes autores uma figura de absoluto, como se eles quisessem nos transmitir grandes verdades. Queremos nos informar sobre os seus saberes e suas práticas para que eles possam provocar também os nossos saberes e as nossas práticas. Não queremos formar espécies de “igrejinhas” com os seus adeptos. Não temos tempo para isso, pois a urgência do momento consiste em socorrer as crianças e as famílias.

Há um eixo transversal a atravessar o nosso encontro com estes autores: o ponto em comum de nos fazer pensar em um trabalho de base, de nos convidar a olhar com especial atenção para este lugar “onde tudo começa”.

Alice Miller

Vamos compartilhar de um modo resumido, alguns temas presentes na obra de Alice Miller. Esta psicanalista, judia-polonesa, nasceu na Polônia no dia

12 de janeiro de 1923, e faleceu no sul da França, em Saint-Rémy-de- Provence, no dia 14 de abril de 2010. Em 1946 ela se mudou para a Suíça, e se vinculou ao círculo de psicanalistas de Genebra. Mais tarde ela rompeu com este grupo por entender que os psicanalistas acabavam assumindo uma posição de defesa dos pais. Se apresentando de um modo diferente, ela queria ser radical no combate aos maus-tratos. Mais do que estar com os pais ela tomou o partido das crianças. Ela afirmava a necessidade de fazer uma profunda revisão sobre o quarto mandamento das “Tábuas de Moisés”, vendo neste seu esforço a exigência de um estudo sobre as bases judaico-cristãs de nossa cultura. Para ela, o quarto mandamento, “honrar pai e mãe”, precisa no mínimo ser rediscutido entre nós.

O nosso encontro com Alice Miller tem como ponto principal compreender o que ela pesquisou e pensou sobre os maus-tratos com a criança. Ela atribui aos “maus-tratos” um sentido de base, e confere para ele uma materialidade. Por que os maus-tratos têm toda esta força? Porque nos maus-tratos acontece a constituição de algo muito ruim para a criança e nefasto para toda a sociedade. Na situação de maus-tratos, se produz na criança uma combinação perversa entre a ferida na dignidade do sujeito e a produção da culpa. A criança se sente ferida em sua dignidade quando ela sofre qualquer tipo de agressão. Em nossa cultura, uma criança se vê como um ser muito frágil diante da figura forte de um pai ou de uma mãe. Em seu entendimento, a criança não entende porque um pai e uma mãe podem fazer um gesto de violência contra ela. Se um pai e uma mãe são sempre bons, quem está errada é ela, a criança. Aí nasce uma culpa muito poderosa, pois faz a criança se convencer de que os pais estão sempre certos.

Qualquer tipo de mau-trato feito com uma criança a prejudica em todo o seu desenvolvimento individual. O mau-trato feito com uma criança também

prejudica toda a sociedade, pois a base de toda uma cadeia de violência social está localizada nesta combinação perversa entre uma ferida e uma culpa. Para Alice Miller, não adianta fazermos tantos esforços para combater a violência no meio social se nós não tocarmos em sua raiz, lá onde tudo começa. O pacto perverso (a combinação entre a ferida e a culpa) é a base de sustentação de toda a cadeia de violência que está presente na sociedade.

O nosso estudo fará a seleção de alguns temas considerados por nós como sendo nucleares em toda a sua obra. Selecionamos temas com o objetivo de animar a todos para experimentar muitos outros encontros com a Alice Miller, no estudo de seus livros, por meio do diálogo com o seu pensamento. O nosso tempo também nos impõe um limite. O nosso curso está organizado para acontecer em poucas horas. Queremos fazer com que estas horas de dedicação sejam bem aproveitadas.

Nós selecionamos alguns temas na obra de Alice Miller:

O pacto perverso (ferida e culpa) – já iniciamos uma explicação sobre este perigoso acordo. Quando uma criança leva uma surra ela se sente ferida em sua dignidade de sujeito, em sua humanidade ainda em construção. Como ela não pode ver nenhum defeito nos pais ela se sente culpada.

Alice Miller não atribui aos pais uma condição de perfeição. O pai e a mãe são seres humanos, eles podem errar, têm os seus defeitos, têm fragilidades. O problema acontece quando um pai afirma para a criança que está surrando ou está castigando “para o seu próprio bem”. Esta é a frase mais perigosa. Diferente disso é quando um pai reconhece para a criança o seu erro, quando pede desculpas para ela e explica que ela não tem culpa de nada. Ao fazer isso ele oferece um gesto de reparação. Ao reconhecer o seu erro ele não perde a autoridade, ao contrário, ele descobre outro modo de ser autoridade, a serviço da saúde, da vida e da liberdade.

Há na obra de Alice Miller muitas inspirações para nos ajudar na invenção da autoridade e na invenção da disciplina, sempre a serviço da vida. Esta nova concepção de autoridade e de disciplina nos apresenta a dimensão política de uma educação para a liberdade.

Há também, em sua obra, elementos para nos fazer pensar em uma abordagem política e econômica do corpo. Ela é política porque rompe com os idealismos, desfaz aquela composição que atribui aos corpos uma condição de

serem anjos ou de serem máquinas. Somos um corpo frágil, o nosso corpo pede cuidados, o nosso corpo pode adoecer. E a dimensão econômica se refere a uma dinâmica de trocas, pois é o corpo quem comanda todas as trocas necessárias para a sustentação da vida. Nós precisamos fazer boas trocas com os outros, com quem convivemos, e boas trocas com o meio social, isto é, com o mundo onde nós experimentamos as mais variadas formas de pertencimento e de reconhecimento.

A radicalidade da obra de Alice Miller tem sua expressão evidente quando ela nos faz pensar sobre a força do corpo. Ela afirma: “um dia o corpo pede a conta”. A Alice Miller não conheceu os resultados dos estudos do biólogo português António Damásio, pois ele confirmou com as suas pesquisas, que a nossa memória não está só em nosso cérebro, ela está em todas as nossas células. Isto nos faz pensar sobre as marcas do corpo em relação com aquilo que não fica esquecido. Um dia um corpo ficou marcado por uma ferida, por uma surra, e mais tarde, ele, em sua sabedoria, vai nos cobrar. E aí vem muitos adoecimentos, que aos olhos de muita gente, emergem como sendo formas de doença sem explicações emocionais.

A Alice Miller também não teve tempo de conhecer o trabalho do filósofo Markus Gabriel, que no ano de 2015, publicou na Alemanha, o seu livro: “Não sou meu cérebro. Filosofia do espírito para o século XXI.” Neste livro, este filósofo provoca uma ampla discussão sobre os usos perversos feitos com a “Neurociência”, um uso irresponsável e superficial de saberes da ciência para garanti formas de dominação, sob um aparato sutil de “progressismos”. Certamente, sem saber, o jovem filósofo Markus Gabriel, acaba confirmando todas as hipóteses defendidas por Alice Miller em seu período de vida.

Donald Winnicott

Nós vamos nos inspirar também na obra de Donald Winnicott. Ele nasceu no dia 07 de abril de 1896, na cidade de Plymouth, ao sul da Inglaterra, e faleceu em Londres, no dia 28 de janeiro de 1971. Aqui não podemos fazer um estudo extenso e mais consistente sobre a obra de Winnicott, pois nosso curso tem pouco tempo, e nós organizamos um percurso de leitura assumindo a obra de Alice Miller como sendo o eixo principal. A partir do pensamento de

Alice Miller nós vamos buscar as afinidades com o pensamento de Donald Winnicott e com a Helena Antipoff.

Há dois aspectos nos orientando nesta busca de afinidades: 1) o trabalho de base; 2) uma escolha radical em uma posição política em defesa da criança e em defesa da vida de todos nós. Nós faremos uma apresentação geral dos livros de Winnicott para em seguida optar por trabalhar com a leitura de um livro: “Os bebês e suas mães”. A leitura deste livro acontecerá como uma modalidade de rastreamento dos argumentos a favor da nossa abordagem sobre o trabalho de base. E para nós, a base que dá o fundamento da vida é aquela que acontece no ato de acolher e de cuidar, feito por uma mãe, em um ambiente saudável. Outros aspectos sobre a família, compreendida enquanto ambiente de acolhimento para uma vida que se inicia serão explorados em alguns textos de outro livro: “A família e o desenvolvimento individual”.

Entre os temas centrais por nós escolhidos estão os seguintes

1. A família é o lugar onde tudo começa, ela é o territóro em que toda a sua intimidade precisa ser bem protegida, para oferecer o acolhimento

2. A mãe suficientemente boa. A criança nasce e vive uma relação totalmente dependente com sua mãe. Entre todos os animais, na natureza, nós somos os mais desprotegidos, pois se uma criança, ao nascer, for totalmente abandonada pela mãe, fatalmente morrerá. Vamos entender esta dependência absoluta em sua relação com a qualidade do acolhimento e com a intensidade dos cuidados.

3) O objeto transicional. Nós queremos entender como Winnicott chegou aesta formulação para lidar de uma forma realista com a experiência da ausência da mãe, com os modos de um bebê elaborar para si os afastamentos. Aqui queremos explorar os sentidos atribuídos aos tempos de ausência e aos tempos de presença, para nós pensarmos sobre a qualidade do encontro própria das experiências em trabalhos de base. Nós vamos discutir o quanto um “objeto transicional” tem relação direta com uma função mãe enquanto sendo suficientemente boa e com os mais variados modos de uma mãe apresentar o mundo ao seu bebê.

Em seguida, vamos estudar as três categorias fundamentais para um bom cuidado: 1) o segurar (“holding”); 2) o manusear (“handling); e o 3) apresentar o mundo.

Enfim, faremos um percurso inicial da obra de Winnicott, porém queremos aproveitar ao máximo os saberes de todos os participantes deste curso para provermos um bom confronto entre os conhecimentos oferecidos pelos livros e as aprendizagens recolhidas em nossas mais variadas formas de presença no mundo das crianças, bem como em nosso mundo, quando ainda sabemos cuidar da criança ainda viva em nós.

Helena Antipof

Helena Antipoff nasceu em Grodno, na província da Bielorrússia, no ano de 1892. Faleceu no dia 09 de agosto de 1974, com 82 anos, na cidade de Ibirité, Minas Gerais. No ano de 1929 Helena Antipoff veio para o Brasil, indicada por seu professor Édouard Claparède, de Genebra, atendendo a uma solicitação realizada pelo Governo do Estado de Minas Gerais, empenhado em uma ampla reforma do ensino. O papel da Helena Antipoff se iniciou com a formação de professoras para as escolas do meio rural. Ela também se fez uma referência nos cuidados com a criança portadora de alguma deficiência, com um papel importante na introdução da educação especial no Brasil. A Universidade Federal de Minas Gerais mantem em Ibirité a Fundação Helena Antipoff. No ano de 1940 ela fundou nesta cidade a Fazenda do Rosário, com programas educacionais para atender crianças com necessidades especiais e para a formação de professoras das escolas rurais.

Neste nosso curso nós aproximamos a obra de Helena Antipoff com as obras de Alice Miller e de Donald Winnicott, neste olhar mais atento com o trabalho de base, na urgência dos desafios que o acompanham. É também uma oportunidade de fazer circular sua obra e seu pensamento.

Nos limites do nosso tempo nós vamos usar o artigo “Como pode a escola contribuir para a formação de atitudes democráticas?” Helena Antipoff tem clareza de que a democracia é uma preocupação da sociedade, e mesmo assim, a escola pode contribuir com a democracia oferecendo algo a se realizar lá na base da formação do indivíduo. Para ela, o que está na base? Como a escola pode contribuir na formação do indivíduo e na oferta de uma boa base para a vida em sociedade de acordo com os princípios da democracia?

Em primeiro lugar, a escola pode contribuir na formação de uma virtude a praticar. Esta virtude é a lealdade. Portanto, a escola pode e deve educar um

sujeito para praticar em toda a sua vida a lealdade. Em segundo lugar, a escola pode contribuir com o desenvolvimento de um modo de trabalhar. Trata-se de uma educação para a cooperação.

Com quem podemos contar em nosso esforço nos cuidados com a criança?

A luta pela defesa da criança na realização de todos os seus direitos e no combate aos maus tratos devem ter a contribuição de muitos aliados na defesa da criança e na defesa da vida.

Há muita gente envolvida em dois tipos de acontecimento neste momento do país e do mundo. O primeiro acontecimento é a realização da Conferência Nacional de Educação, marcada para o final de novembro do ano de 2022, em Brasília, com o desafio de terminar a elaboração do Plano Nacional de Educação para a próxima década. Esta conferência tem também o compromisso de construir o Sistema Nacional de Educação. Ela foi preparada por uma multiplicidade de eventos, conferências, debates, escritos, nos âmbitos dos municípios e dos Estados. Muita gente já colaborou com as discussões sobre o Plano de Educação e sobre as experiências dos sistemas municipais e sistemas estaduais.

A conferência nacional de 2022 acontece e se desdobra. Em toda esta diversidade de ação nós podemos atuar com os propósitos de atender aos direitos da criança e de trabalhar pelo fim dos maus tratos na infância.

Os desdobramentos múltiplos se apresentam pela própria dinâmica do Plano e do Sistema. Em primeiro lugar, porque eles nunca estão acabados, estão sempre se refazendo a partir do confronto com as diversas realidades. Em segundo lugar, os Planos e os Sistemas, estabelecidos para um território nacional têm o poder de induzir novas ações sobre os municípios e as regiões. Isto porque estamos concebendo os planos e os sistemas como acontecimento e como movimento. A nossa aposta é que estes dispositivos de organização de nosso fazer educacional não se transformem em monumentos ou em documentos de arquivos. Este modo de compreender a conferência amplamente, pelos seus desdobramentos, se apresenta como um desafio a nos lançar em muitas frentes de trabalho, sobretudo para as práticas a serem realizadas lá na base, com as famílias e com as escolas.

O segundo acontecimento se refere a um movimento internacional lançado por uma liderança mundial que vem se apresentando com um forte carisma capaz de mobilização lideranças e comunidades. Trata-se do Papa Francisco. Ele está preocupado com a situação de barbárie que vem crescendo em todos os lados. Diante desta situação de muito sofrimento ele convida a todos os homens de boa vontade a se empenharem na reinvenção do humanismo. A busca de um novo humanismo envolve a família e a escola.

O Papa Francisco lançou o Pacto Educativo Global e a Economia de Francisco e Clara. Neste movimento a educação e a economia se articulam com o propósito de alcançar as respostas mais efetivas na construção de um mundo com mais saúde, com mais alegria, enfim, um mundo mais humano. Nós podemos nos aliar a estas iniciativas com o compromisso de envolver mais pessoas no combate aos maus tratos na infância e na realização dos direitos da criança.

O primeiro passo de nosso percurso de estudo…

Neste nosso primeiro encontro de estudo tivemos a intenção de nos provocar para pensar o trabalho de base, a se realizar com a família e com a escola, nesta perspectiva de reconhecer que aí é onde tudo começa. O nosso movimento de pensamento e de adesão pela causa da criança teve seu início com as seguintes perguntas instigadoras:

Por que proteger a criança?

Por que apoiar as famílias?

Por que fortalecer os vínculos entre a escola e a família?

Por que a criança tem direito ao brincar e porque deve ter o direito de brincar em ambiente protegido?

Por que a falta do brincar prejudica o desenvolvimento de toda uma vida individual?

Por que o brincar é a base da cultura e a base da saúde de uma sociedade inteira?

Por que os maus tratos na infância são as bases da cadeia de violência na sociedade?

Por que os maus tratos na infância prejudicam o desenvolvimento de toda uma vida individual?

Nós vamos realizar o nosso estudo fazendo uso das aulas expositivas, com discussões e com orientações de leituras e de contatos com as práticas de diversos grupos em nosso país. Em todo este percurso faremos registro de nossos pensamentos, de nossas inquietações, de nossas partilhas. Desejamos a participação de todos também na elaboração de um livro coletivo, um livro a ser escrito em mutirão. Cada participante do curso pode oferecer a sua contribuição na forma de sínteses de leituras, na forma de relatos de suas práticas, na partilha de dificuldades e de descobertas.

Vamos fazer deste estudo com aquela varinha mágica sugerida por um pequeno texto da autoria de Eduardo Galeano:

“Em Cerro Norte, um bairro pobre de Montevideo, um mágico fez uma função pública. Com um toque da varinha fazia com que um dólar brotasse do punho ou do chapéu.

Terminada a função a varinha mágica desapareceu. No dia seguinte, os vizinhos viram um menino descalço que andava pelas ruas, com a varinha na mão: batia em qualquer coisa que encontrava e ficava esperando.

Como muitos meninos do bairro, esse menino, de nove anos, costumava afundar o nariz num saco plástico de cola. E certa vez explicou:

– Assim eu vou pra outro país.”

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