você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você, morou irmão?

Cê tá dirigindo um carro

O mundo todo tá de olho em você, morou?

Sabe por quê? Pela sua origem, morou irmão?

É desse jeito que você vive, é o negro drama

Eu não li, eu não assisti

Eu vivo o negro drama, eu sou o negro drama

Eu sou o fruto do negro drama

Negro Drama – Racionais MCs

(…) Pra se entender, tem que se achar,

que a vida não é só isso que se vê,

é um pouco mais.

Que os olhos não conseguem perceber,

E as mãos, não ousam tocar,

E os pés, recusam pisar.

(…) Sei lá, não sei, sei lá, não sei

Só sei que toda a beleza de que lhes falo,

Sai tão somente do meu coração.

Clementina de Jesus – Sei lá, mangueira

 

Este texto é desfecho de elaborações realizadas durante uma fala na Semana de Educação Física da Universidade Estadual Paulista campus Rio Claro de titulo “Representatividade e Identidade da Criança Negra na Escola”

Por Luciana Ferreira

Arte de Noemi Martinelle

Ao elaborar esta fala, me foi dada a oportunidade de repensar minha trajetória na educação, minha negritude, minha atitude enquanto professora negra.

Lamento por esta fase impossível que estamos vivendo no país e no mundo. O descaso com a Educação, com a natureza, com os povos originários e tradicionais, com o que de fato é importante para a constituição de um povo. Estamos assistindo um momento sinistro onde o cerceamento, a censura e a estupidez têm ditado as regras do jogo político. Flertamos com o perigo do avanço autoritário, ditador e fascista.

Divido com vocês duas músicas que tocaram aqui durante a nossa chegada: Racionais MCs, “Negro drama” e Clementina de Jesus, “Sei lá, Mangueira”. Epígrafes que guiaram esta fala e que me acompanham há algum tempo.

Quando pensei no tema desta mesa, “representatividade e identidade da criança negra na escola”, rapidamente me veio à cabeça uma pergunta: E as professoras? Quem são? Seriam Negras?

Com isso levantei algumas possibilidades a respeito das palavras “representação” e “identidade”, e gostaria de fazer este percurso de pensamento junto com vocês, fazendo-lhes algumas perguntas, algumas suspeitas, que vão nos acompanhar durante esta fala. Vamos tentar subverter um pouco o modo tradicional de fazer Educação, como diria Paulo Freire, onde uma pessoa fala a maior parte do tempo (aquela que sabe) e as demais escutam (as que não sabem). Me alinho também a  proposta de bell hooks, autora estadunidense que convido para pensar conosco. Bell em seu livro Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, fala sobre a necessidade de escutar, ver e sentir a presença da criança negra na escola e, com esta presença, descobrir possibilidades pedagógicas que empurrem a nossa prática a algo desvinculado do modelo universal, hegemônico, racista, patriarcal, saturado em que habitamos.

Sendo assim vamos juntos com a primeira pergunta:

Vou utilizar a palavra professora, tudo bem? Creio que os motivos são nítidos, são óbvios…

Quem aqui teve uma professora negra na Educação Infantil? Levante a mão. Não vamos nos apegar às práticas, aos modos, à auto-identificação, ao colorismo, à pessoa negra retinta exclusivamente, pensem na imagem das suas professoras, nas características visíveis das professoras que vocês tiveram.

Quem aqui teve uma professora negra no Ensino Fundamental I e II?

Quem aqui teve uma professora negra no Ensino Médio?

E finalmente, quem aqui tem ou teve uma professora negra no Ensino Superior?

(Pouquíssimas pessoas levantaram a mão, como prevíamos. No auditório, cerca de 50 pessoas assistiam esta mesa, mas cerca de cinco levantaram a mão no total das perguntas).

Bom, hoje em dia, a gente tem o hábito de perguntar as coisas pro Google, né? Eu não gosto muito, por que o Google anda monitorando demais a gente, recomendo procurarem outro buscador, como o DuckDuckGo, que não fica te perfilando…. Mas, por aqui, vamos de Google mesmo que ele expressa o senso comum, vamos ver o que é uma professora de Ensino Fundamental para ele (aparece uma maioria de professoras brancas no telão).

Para o Google, a professora de Ensino Fundamental tem esta cara. Parece com as nossas professoras?

Bom, então eu pergunto a vocês: como pensar processos de representação da criança negra quando não encontramos professoras negras nas escolas?

Ora, antes de eu ser uma professora negra, eu fui/sou uma criança negra. E sabem quando eu encontrei uma professora negra? Nunca! Eu nunca tive aulas com uma professora negra. Para mim, era como se as questões da minha cor, do meu cabelo, da minha pele, da História, da religiosidade, da luta do meu povo… É como se nada disso existisse. Pelo contrário: eu me sentia tão pequena, tão sem referências, que dificilmente falava, perguntava, opinava durante as aulas.

Na adolescência foi a virada. Me tornei o que, em geral, chamamos de uma “aluna ruim” – “péssima”, na verdade. Eu preferia estudar sozinha. Não escutava as professoras. Ia à escola para encontrar os amigos, e só! Aprendi no antigo primeiro grau que o que queriam de mim na escola era a obediência e não o desejo de aprender. As professoras não estavam dispostas e lidar com as transformações provocadas pelo conhecimento, que à medida que passava o tempo, estavam dispostas apenas a nos aquietar e nos contentar com uma educação que aceitava a dominação.

Foi somente no Magistério, ao fazer os estágios e encontrar um monte de “Lucianas” nas escolas, que percebi como as coisas iam mal. Me incomodava demais estar na escola e ver a reprodução do mesmo modelo, este certo apaziguamento ao qual as crianças, sobretudo as crianças negras, eram submetidas. Dos tempos de estágio aos tempos em que ministrei aulas na Escola Pública de Educação Básica, sentia que as crianças negras vinham até mim e sorriam gratuitamente. Havia uma relação que não se expressava na linguagem. Existia um conjunto de gestos, com risos altos, com um tipo de afeto na confiança, algo que se estabelece com um igual, com um parente, aprendi mais recentemente sobre a “relação de parentesco”, na antropologia de Viveiros de Castro e com os povos indígenas. Crianças negras, taxadas como as piores da escola, encontravam espaço nas minhas aulas – espaço que eu fazia questão de alimentar.

Assim, ganhei a confiança das crianças na escola e a antipatia das colegas racistas, que não queriam saber de onde vinha a tal “indisciplina”, sempre com o discurso de que tal criança era assim porque tinha uma família desestruturada, ou porque era sangue ruim mesmo. “Aquele negrinho não presta, não”, “aquela negrinha do cabelo ruim”. Naquela época eu não sabia muito o que fazer. Se fosse hoje, as teria denunciado.

Eu pensava assim: essas crianças já nascem com 300 anos! Para citar Lilia Moritz Schwarcz, no livro Sobre o autoritarismo brasileiro, foram mais de 10 milhões de pessoas que saíram da África, sendo 4,8 milhões desembarcados no Brasil que, escravizados, conheceram por aqui toda a forma de violência. Impossível não pensar que essas crianças carregam um tanto deste sofrimento, dor, desprezo, medo, por anos, séculos de injustiça! Será que essas professoras não veem que este corpo, o corpo de uma criança negra não está vazio? Ela carrega uma ancestralidade, uma rebeldia, no rosto, na alma, nos olhos, a criança negra carrega uma multidão com ela!

É nesta lida com um semelhante, sobretudo neste encontro com as crianças negras na escola (Rian, Felipe, Pablo, Shine, Carina, Thiago, Rubinho, e tantas outras) que a gente dá de cara com a gente mesma, e aí vem a pergunta: e aí Luciana? Vai ser negra ou não vai? Se vai, aguentará o racismo? A injustiça? O assédio? A linha dura? As piadas? A luta diária por direitos? Se não vai, aguentará a cobrança dos seus? A herança? O não lugar? A ancestralidade gritando? O cabelo alisado? A destruição do seu corpo?

Escolhi ser negra. Decidi aguentar o racismo, a linha dura, lutar pelo direito, pelas cotas. Escolhi uma expressão negra, uma didática negra, uma vida negra.

Como não tive referências, pois não tive uma professora negra para pensar como poderia ser, pude inventar. Tentei e continuo tentando uma prática pedagógica diferente das que me foram ensinadas. Busco combater o modelo universal, racista, sexista, violento, desigual ao qual somos expostos todos os dias.

Por falar nisso vocês assistiram ao documentário Serena x Árbitro ? Serena é enclausurada numa identidade fixa: a mulher negra que grita e esperneia porque se sente injustiçada. A mulher negra que o universo branco, sexista, afirma não estar no seu lugar. Ao assistir o documentário fiquei pensando: A Serena é única. Não existe, nem vai existir outra Serena Willians. Será que é este o grande incômodo? Sua singularidade? Ao olhar o que acontece com Serena, percebemos que o mesmo se dá com outras pessoas negras, pois não é o que ela faz, mas sim o modo como as forças opressoras anulam a sua singularidade, generalizam e a aprisionam em algo fixo – mulher, negra, raivosa, desobediente, que não sabe perder – negro preguiçoso – negro suspeito – negro isso, negro aquilo: uma identidade atribuída ao povo negro pelo opressor. 

A mim, o tema da opressão chegou pelo Paulo Freire. E, coincidentemente, pela bell hooks, esta autora estadunidense que trago para esta conversa. Ela conheceu Paulo Freire quando procurava um pensador, uma pedagogia que lidasse com estas questões, que lidasse com o processo opressivo e político que orienta a Educação. Ela estava procurando uma teoria crítica para ajudá-la com suas aulas na universidade. Ela, uma mulher negra, tivera na infância professoras negras e após a mudança de sua família para a cidade, percebera que as mulheres com as quais se identificava, sentia admiração e carinho, haviam desaparecido de sua nova escola.

Neste percurso de pensar modos de escapar das práticas totalizantes e alienantes, que transformam todos os alunos em um só corpo discente e anulam sua singularidade e perdem o sentido do processo de diferenciação, bell me ajudou a dar linguagem a um tipo de pedagogia radical e intuitiva, que busco criar na relação com meus alunos. Seja aqui na Universidade, seja nas escolas com as crianças, seja nas comunidades e aldeias com as quais venho atuando ao longo das pesquisas que realizo, onde a Educação Popular tem centralidade.

Um ponto que gostaria de destacar é o de transgressão.

Sabemos que a escola é um espaço onde a reprodução dos modos de controle e do exercício injusto do poder acontecem quase que de maneira ritualística. Seja nas fileiras, na dificuldade em escutar o que uma criança conta sobre sua vida ou sobre a aula, na incrível falta de alegria em algumas turmas, onde o riso é proibido. Na falta de corpo, onde a expressão, a dança, a vontade de fazer xixi lhe é negada, pois o corpo, sobretudo da criança negra, não é matriculado. É neste espaço que aprendemos o tipo de professora que não desejamos ser.

Transgredir para bell hooks significa romper com todo o tipo de dominação que existe no espaço da sala de aula. Significa, nas palavras dela, “abolir a falta de disposição de abordar um ensino a partir de um ponto de vista que inclua uma consciência de raça, de sexo e de classe social, em que a raiz deste processo está muitas vezes no medo de que a sala de aula se torne incontrolável…”, de “fazer da sala de aula um contexto democrático onde todos sintam a responsabilidade de contribuir”, que significa “transgredir as fronteiras que fecham cada aluno numa abordagem do aprendizado como rotina de linha de produção”, onde as identidades são fixas em apenas um modo de ser e habitar o mundo para dar espaço a um processo onde a aposta é de que cada pessoa possa inventar outros modos de existência, a partir de um processo educacional que com Freire se afirma libertador, onde todos tomam para si a responsabilidade do processo educacional como se fosse uma plantação em que todos temos que trabalhar juntos!

O segundo ponto que destaco é o de ensinar com a pluralidade.

No livro de bell, Ensinando a Transgredir, encontramos a palavra multiculturalidade. Segundo ela, esta ideia está presente em toda a sociedade nos dias atuais. Toda a sociedade se diz democrática e cultiva os melhores gestos e valores, sobretudo na Educação. São muitas palavras presentes nas propostas pedagógicas que expressam este propósito, como “diversidade”, “inclusão”, mas será que basta reconhecer a diversidade? Basta reconhecer a diversidade e manter cada um no seu lugar? Penso que o processo educacional e as relações necessitam de muito mais. A Educação necessita que a gente se misture e se contagie uns com os outros. A educação necessita que a gente se modifique a partir do encontro com a diferença.

Encaremos a realidade. Em todos os níveis, da Educação Infantil à universidade, temos que reconhecer que algum tipo de mudança se faz necessária. Muitos de nós aqui presentes frequentamos escolas onde o modo de ensinar refletia a noção de uma única maneira de pensamento e experiência, a qual sempre acreditamos ser a maneira correta. A maioria de nós aprendeu a ensinar reproduzindo um modelo. Como consequência, a Educação, a escola, tornou-se um espaço em que não se pode ou se deve perder o controle. Então a pluralidade, as diferenças, se consideradas, trariam muitos problemas à escola. A solução encontrada foi anular estas singularidades e focar no conteúdo das disciplinas. As professoras tornaram-se técnicas pedagógicas (e podemos dizer que as coisas estão ficando ainda mais complexas quando palavras como facilitação, gestão e empreendedorismo adentram os currículos, mas isto seria conversa para outra mesa) e sobre isto exige-se um debate profundo sobre o lugar em que o mercado-capital vem colocando a figura da professora, da Escola e da Educação. É, definitivamente, algo preocupante.

Retornando, penso que seja de extrema importância levar em consideração este receio das professoras. Já ouvi de muitas colegas que a sala de aula precisa ser um espaço seguro, local com foco no ensino e na aprendizagem, onde as crianças assistam as aulas silenciosamente e respondam somente quando são estimuladas a isso. O que deixamos de notar é que este ambiente de suposta neutralidade não é nada seguro para uma criança negra que, em sua maioria, se mantém calada prolongadamente, ou simplesmente não interage nem com a professora nem com os demais alunos.

Ouvi de professoras, colegas brancas, a dificuldade que sentem com algumas crianças negras que permanecem caladas durante muito tempo, que não se sentem confortáveis em expor suas ideias na sala de aula.

Aqui percebe-se o jogo das relações de poder centradas na linguagem: quem fala? Quem ouve? E Por que?

O cuidado para que todos na sala de aula estejam atentos ao processo de contribuir para o aprendizado não é uma abordagem comum no sistema chamado por Paulo Freire de “educação bancária”, no qual os educandos são meros depósitos, consumidores passivos de conhecimento desconectados de sua realidade e necessidade.

Uma vez que temos muitas professoras ensinando a partir deste modelo, torna-se difícil consolidar uma educação numa perspectiva comunitária ou numa perspectiva, como anunciaria Gert Biesta no livro Para além da aprendizagem, um espaço mundano, no qual se valorize a pluralidade e a diferença em que educadores preocupam-se menos com o controle e o projeto, e mais com a condição paradoxal da educação que é o seu fazer e o seu desfazer, à medida que os alunos encontram suas vozes, dentro da sala de aula.

bell hooks fala também da “necessidade de instituir espaços de formação no qual as professoras tenham a oportunidade de expressar estes temores e, ao mesmo tempo, criar estratégias de atuação em uma sala e um currículo múltiplo”. E complementa dizendo que “a escuta atenta das vozes dos alunos, fazer da sala de aula uma comunidade são desafios para ambos os lados – professoras e alunos”. Um aluno de bell disse a ela o seguinte: “nós fazemos o seu curso. Aprendemos a olhar o mundo de um ponto de vista crítico, que leva em conta a raça, o sexo, a classe social. E não conseguimos mais curtir a vida…”. Duro isso, não? Toda mudança, vem acompanhada de dor. Não é fácil…

Mas creio que cada dia mais se faz necessário estudar o sentido destes conceitos universais, para que todos possam compreender a proposta da singularidade, numa perspectiva cada vez mais imparcial, pois a escola pode e deve conversar sobre a opressão, sobre o rompimento de modelos racistas, mesmo na ausência de pessoas negras. Uma vez que este tipo de transformação oferece possibilidades para todas as crianças. A transformação deste tipo de sala de aula é tão importante quanto o de ensinar bem num contexto plural. Quando nós educadoras e educadores deixamos que nossa pedagogia seja radicalmente transformada pelo reconhecimento da pluralidade do mundo, podemos oferecer aos alunos a educação que eles desejam e merecem.

Por falar na educação que as crianças desejam, me lembrei de uma situação bastante curiosa que vivenciei em uma cidade aqui do estado de São Paulo, quando atuei com formação da rede municipal com a temática dos Projetos Políticos Pedagógicos.

Nesta ocasião realizávamos escutas da comunidade escolar para a construção dos PPP’s. Num dado momento, percebemos que a Escola que os pais queriam era completamente diferente da Escola que as crianças queriam. Enquanto mães e pais queriam aulas de línguas e tecnologias, as crianças da Educação Infantil queriam apenas mais tempo no parque para brincar.

Reunidos na escola após esta constatação, perguntamos aos pais o que eles faziam naquela mesma escola quando estudaram nela.

A maioria lembrou das brincadeiras, casinha, carrinho, areia, tinta. Da alegria de estar no parque, dos amigos, das festas.

Ninguém teve aulas de línguas.

Ninguém teve aulas de computação ali.

Esta história me faz pensar muito nos modelos. Quem disse que uma escola boa precisa ter um montão de aulas? Quem disse que o modelo de hierarquia onde o adulto sabe e a criança não é o ideal? Quem disse que devemos seguir modelos?

O terceiro e último conceito que gostaria de destacar é o de uma pedagogia radical.

Para bell, o temor de perder o controle na sala de aula muitas vezes leva professores a cair num padrão convencional de ensino, em que o poder é usado destrutivamente. Esse medo de perder o controle molda e informa o processo pedagógico docente na medida em que atua como barreira ao envolvimento construtivo com as questões de classe social, de raça, gênero entre outros.

Deste modo, uma professora engajada em uma pedagogia radical reconhece a importância de confrontar construtivamente tais questões e acolhe a oportunidade de alterar suas práticas com a criação de um modo diferente de educar. Quero com isso pensar em um modo de educação que se realiza, como diria Laymert Garcia dos Santos em Amazônia Transcultural, num modo de fazer “com” os alunos e não somente “para” eles. Rompendo definitivamente com o sentido de linha de produção de aprendizagem para a construção de uma atividade educadora onde professora e estudante se formam e se deformam na medida em que o encontro acontece, menos pelo decreto ou pelo que está nas apostilas, e mais na produção do conhecimento conjunto, intensivo, plural, singular. As experimentações que realizo tem caminhado para este sentido.

Aprendi com Espinosa que é preciso construir bons encontros. Busco a cada aula, seja com crianças ou com adultos, a cada encontro na rua, nas comunidades, nas aldeias, sair diferente do que entrei, assumindo uma condição de devir.

Tento me livrar das capturas identitárias que outrora nos foram impostas pelos opressores. Identidades que nos colocam em uma só condição, em um só modo de vida. Sabemos todos que um navio negreiro era composto por uma multiplicidade infinita! Lá existiam pessoas de diversos territórios, povos, línguas, tribos, culturas, etnias da África. E qual foi a primeira violência cometida pelo empreendimento escravagista? Transformar toda essa multiplicidade, toda a potência, toda a possibilidade presente ali em uma coisa só. Apenas Negros. Negros e ponto.

Venho tentando sair desta identidade aprisionada para buscar uma Educação com Freire, que educa para a liberdade. Diria Fanon, liberdade para quem é oprimido e liberdade para quem oprime. Tento lidar com cada aluno de um jeito, observando seus gestos, sua expressão, seu modo de vida, singularizando também as  nossas relações. Algo que traga possibilidades a mim e a eles de sermos mais! De se modificar a cada aula, a cada dia.

Oxalá que mesas como esta não necessitem mais existir, que possamos nos reunir para falar de Educação, de estudos, de produção de conhecimento, onde a criança negra não seja o objeto e não necessite buscar direitos ou representação, pois isso já estará garantido. Com Paulo Freire, encerro por hora: “ser capaz de recomeçar sempre. De fazer, de reconstruir, de não se entregar, de recusar burocratizar-se mentalmente, de entender e de viver a vida como processo, como vir a ser…”

plugins premium WordPress